22/02/2013 - 21:00
Como um raio num dia de céu azul. Foi assim que o decano do Colégio de Cardeais, o italiano Angelo Sodano, recebeu a notícia da renúncia do papa Bento 16 na segunda-feira 11. Após apenas oito anos à frente da Igreja Católica Apostólica Romana, o alemão Joseph Ratzinger decidiu se retirar. “Já não tenho forças para exercer adequadamente o ministério petrino”, afirmou Bento 16 em latim, ao anunciar sua renúncia, a primeira em quase seis séculos. “No mundo de hoje, sujeito a rápidas transformações, para conduzir a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário o vigor tanto do corpo como do espírito.”
Céu revolto: um raio atinge a Basílica de São Pedro, no Vaticano,
horas depois da renúncia de Bento 16
A partir do dia 28 deste mês, a maior igreja cristã do mundo, uma instituição com mais de dois mil anos de história, estará sem comando. O conclave que elegerá o sucessor de Bento 16 acontecerá a partir de meados de março. Também não é possível indicar entre os papáveis quem é o grande favorito (veja quadro “Santo poder”). A única coisa certa é que, seja quem for o escolhido, o novo Sumo Pontífice terá de enfrentar desafios do tamanho da importância da Igreja Católica Apostólica Romana, dividida por disputas de facções, abalada em sua imagem, com influência em queda, sobretudo, entre as jovens gerações.
Mais do que um líder espiritual, responsável por manter a fé dos cerca de 1,2 bilhão de católicos espalhados ao redor do mundo, o próximo ocupante do trono de São Pedro terá de dar conta de tarefas à altura de um CEO de uma grande empresa. Era exatamente uma qualificação que o papa Bento 16, considerado um dos mais brilhantes teólogos de sua geração, confessou não ter. “Não tenho talento para administração ou organização”, disse, em 2005, ao assumir o trono de São Pedro, sucedendo a João Paulo 2. Apesar de a modéstia ser um traço característico do então cardeal Ratzinger, ele, neste caso, estava certo.
Quarta de cinzas: em sua última missa, o papa disse que a Igreja
deve encontrar uma nova forma de se relacionar com o mundo
Seu papado foi marcado pela perda de fiéis para outras religiões, escândalos que constrangeram a Igreja, como o dos padres pedófilos, e corrupção, a exemplo da denúncia de lavagem de dinheiro do Banco do Vaticano. Bento 16 não soube também gerenciar a briga fratricida pelo poder no Vaticano. Caberá a seu sucessor enfrentar essas questões que afetaram a imagem de uma instituição milenar. Estancar a perda de fiéis talvez seja o tópico mais importante a ser resolvido. Com exceção da África e da Ásia, a proporção de católicos em relação à população está diminuindo em todas as regiões do mundo. No Brasil, por exemplo, a Igreja Católica está perdendo a batalha para os evangélicos.
Segundo o Censo 2010, realizado pelo IBGE, o número de católicos encolheu 12,2% na última década. Os evangélicos, por sua vez, avançaram 44,1%. Os 123,3 milhões de fiéis que se declararam católicos representavam 64,6% da população brasileira. Esse emagrecimento de suas fileiras reflete a dificuldade enfrentada pela Igreja Católica de se posicionar no cenário político e cultural dos novos tempos, na opinião da socióloga Maria José Rosado Nunes, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Seguir uma religião, atualmente, não é mais uma questão de tradição”, afirma Maria José. “Há várias opções e as pessoas fazem uma escolha.”
A situação é semelhante à de uma empresa que tinha uma posição dominante no mercado, sem ter de preocupar-se com competidores à sua altura. Agora, precisa enfrentar a concorrência e não sabe como reagir. Além de compreender o novo papel da Igreja em um contexto de assédio de outras confissões religiosas, o novo papa terá de modernizar a doutrina católica, o que significa mexer em assuntos considerados intocáveis até agora. “Não há como mudar essa realidade sem tocar em questões como o aborto, o uso de células-tronco e o papel da mulher na religião”, afirma a professora Maria José.
Embora Bento 16 tenha sido o primeiro papa a conceder uma entrevista à televisão e o primeiro a usar o microblog Twitter, no essencial manteve-se como um paladino da ortodoxia. Foram poucos e tímidos os avanços que promoveu. No campo teológico, Ratzinger afastou qualquer possibilidade de mudança no posicionamento da Igreja em relação a pecados seculares, como o uso de contraceptivos e a homossexualidade. Quem o suceder terá de tomar a decisão de como pretende modernizar a Igreja. O que não será uma missão fácil. “Uma mudança radical pode levar a Igreja a perder sua identidade”, afirma o consultor Jaime Troiano, especialista em gestão de marcas, de São Paulo. “É preciso preservar a essência do catolicismo, que é o mistério e o encantamento religioso.”
INDENIZAÇÕES BILIONÁRIAS – Os casos de pedofilia envolvendo padres tornam ainda mais difícil essa tarefa. Nos Estados Unidos, as indenizações a serem pagas em processos desse tipo já somam US$ 3 bilhões. Mas pior do que o prejuízo financeiro foi o dano causado à imagem da Igreja. O alto escalão do Vaticano, Bento 16 inclusive, foi acusado de ter reagido de forma lenta ao tomar conhecimento dos casos, e ainda de ter minimizado o tamanho do problema. Soma-se a isso o fato de os escândalos sexuais terem abalado a sociedade americana, tradicionalmente sensível a essas questões, e responsável por estimados 60% das doações ao Vaticano.
Segundo a revista britânica The Economist, os negócios da Igreja Católica nos EUA, como escolas e hospitais, movimentaram aproximadamente US$ 170 bilhões em 2010. No mesmo ano, o faturamento da General Electric, quarta maior companhia do país na época, foi de US$ 150 bilhões. Mas a agenda do novo papa não estará tomada somente pela definição da estratégia a ser seguida. Há também questões financeiras a serem resolvidas. As finanças do Vaticano são envoltas em mistério. Pouco se sabe sobre o quanto a Igreja arrecada, nem quanto gasta. Mas episódios recentes evidenciaram a crise de gestão por que passa a instituição. O mais notório foi o vazamento de documentos secretos do Vaticano por Paolo Gabriele, o mordomo do papa, no caso conhecido como Vatileaks.
Cartas trocadas entre a alta cúpula do Vaticano, e que acabaram na imprensa, denunciavam casos de corrupção envolvendo importantes membros da Igreja. Os documentos também escancaravam as disputas internas de poder, tidas como um dos motivos para a renúncia de Ratzinger. Gabriele foi parar na prisão, mas acabou perdoado por Sua Santidade. Nem o Istituto per Opere di Religione (IOR), conhecido como o Banco do Vaticano, escapou ileso. Em 2010, a Justiça italiana congelou € 23 milhões em fundos de uma instituição ligada ao banco. Seu então presidente, Ettore Gotti Tedeschi, foi acusado de não fornecer todas as informações solicitadas sobre as transações realizadas. Ele acabou demitido e o Vaticano teve os caixas eletrônicos em seu território bloqueados pelo Banco Central Italiano.
Antes de deixar o comando do IOR, Tedeschi, um ex-executivo do banco espanhol Santander, afirmou que tentou fazer reformas na instituição financeira, mas não conseguiu. A ausência de transparência — o banco não segue os acordos de Basileia I e II — foi apontada como o principal entrave para a profissionalização. Na sexta-feira 15, em um de seus últimos atos, Bento 16 nomeou o alemão Ernst Von Freyberg como novo presidente da instituição. “A falta de informações prejudica a Igreja e os fiéis”, afirma José Maria Rodriguez Ramos, professor de economia da Fundação Armando Álvares Penteado. “O Vaticano não é importante só religiosamente, mas também política e economicamente.” Bento 16 teve um pontificado curto, é verdade.
Mas as consequências de sua renúncia podem ser a chance de a Igreja Católica entrar em uma fase de renovação. “É preciso encontrar um novo relacionamento entre a Igreja e as melhores forças do mundo para abrir o futuro da humanidade e para abrir o verdadeiro progresso’’, disse Bento 16, na quinta-feira 14. O novo CEO do Vaticano terá de encontrar a fórmula para manter a tradição e as liturgias da Igreja, ao mesmo em tempo que lida com questões típicas de um executivo moderno. Trata-se de uma tarefa gigantesca, mas nada que não possa ser transposto por uma instituição que resistiu ao longo de 20 séculos a toda sorte de perseguições e crises. Inesperada, a renúncia de Bento 16, vergado pelos problemas de saúde de um homem de 85 anos que o impedem de enfrentar os desafios, pode ser o início da solução.