As mortes severinas continuam lá. Nas paragens de cactos e terra lascada, na água barrenta e rarefeita, nos lábios rachados dos rebentos e no gado magro. Apesar do sol ardido e impiedoso de setembro, prenúncio de mais uma seca brava, elas não arredam pé.
Em Afrânio, em Dormentes,
em Santa Filomena, cidades pernambucanas que integram
o Polígono da Seca (região
de solo árido e baixo índice pluviométrico, que corresponde a
mais da metade do território do Nordeste), onde o estado de emergência foi decretado, o problema tem séculos, mas agora
atinge o limite. A água para o consumo humano dura só até final
de setembro e a expectativa é que novas chuvas só ocorram em meados de 2003. É a sentença máxima do sofrimento e das privações. Quando uma dessas cidades, nascidas e criadas nos bolsões de miséria, entra em estado de emergência logo no início
do período de estiagem (de setembro a dezembro), o que vem pela frente é fome, destruição e abandono.

 

As mortes severinas, descritas por João Cabral de Melo Neto no livro Morte e Vida Severina, estão lá. Entrincheiradas nos rostos de Luisa, de Elisa, de Rosário. Três gerações de mulheres cujo sobrenome é Purificação e a sina é a mesma de suas avós e bisavós: enfrentar a caatinga com criatividade e as ferramentas de que dispõe. Dona Luisa, 80 anos, a matriarca, seis décadas atrás conseguia criar algum gado. Chegou a ter vinte cabeças, que garantiam o sustento da família. A cada seca, o gado definhava um pouco. Há 20 anos, Elisa, 47, decidiu trocar as poucas vacas, que de tão magras nem davam mais leite, por uma criação de galinhas.

Hoje, aos 17 anos, Rosário, que só conhece a fartura da família nas histórias da avó, cuida das três aves que restaram no quintal da casa de taipa na área rural de Afrânio. Por ser a mais jovem, Rosário é a encarregada de buscar água. ?Ando duas léguas para conseguir um pouco de água salobra?, diz, enquanto coloca o balde vazio na cabeça e se ajeita para a longa caminhada. Aqui, nos grotões do agreste, os quilômetros ainda são léguas (uma légua tem 6 km), talvez para encurtar a distância entre a vida sonhada e aquela que tem de ser engolida a seco. ?Minha vontade é ir embora daqui.? Rosário pode tomar o destino dos paus-de-arara e ir mendigar nas cidades grandes. Mas já há, bem perto dali de onde Rosário e sua família moram, uma alternativa que pode tornar seus dias bem mais aprazíveis.

 

Apenas a 20 léguas de Afrânio, seu Raimundo (Laurentino de Souza) é o exemplo de que na caatinga o milagre da multiplicação das hortas pode ocorrer. Seu Raimundo cultiva manga, assim como seu Eliseu (dos Santos Almeida) colhe, safra vai, safra vem, pimenta. E colhe aos caixotes! Seu Raimundo e seu Eliseu integram o perímetro do milagre em plena zona da seca. Eles estão produzindo, exportando, e fazendo desses pequenos pomares de 300 metros quadrados o seu sustento. E como conseguem? Seu Raimundo e seu Eliseu têm a água. A tão valiosa, rarefeita e redentora água. Ela vem do Rio São Francisco em pequenos dutos de irrigação, que recortam o terreno do plantio de ponta a ponta.

Esse oásis de esperança, onde o Nordeste renasce sob a sombra de plantações de banana, goiaba, abacaxi, esparramadas em campos verdejantes, é Petrolina. Cidade pernambucana de 220 mil habitantes, incrustada na margem esquerda do São Francisco, e que está dentro da área de agricultura irrigada, Petrolina transformou-se na Califórnia brasileira, com mais de 300 mil hectares irrigados de culturas de frutas, sendo que 40% da produção é exportada para a Europa, Estados Unidos e Japão.

Lá, em Petrolina, assim como nas outras cidades que compõem a região da bacia do Rio São Francisco, a vida severina está no sorriso de Damião (da Silva). Há dois anos, ele deixou São José do Belmonte, cidade da região de Serra Talhada, uma das mais pobres de Pernambuco, e partiu para o ?eldorado das águas?. Naquela época, a morte severina rondava o casebre em que ele vivia com a mulher e os dois filhos pequenos. ?Eu tinha de cavar 54 palmos na terra para achar água?, lembra Damião. De volta ao presente, ele
vê a água jorrar fácil nas suas mãos, enquanto colhe manga na fazenda da Fruit Fort Agrícola e Exportação Ltda, trabalho que lhe rende R$ 200,00 por mês. ?Hoje consigo sustentar minha família e dormir em paz?, diz ele.

 

Para dona Francisca (Batista de Macedo), viúva, 66 anos e 10 filhos, a fartura de Petrolina, cujo PIB cresce a uma média
de 7,2% ao ano e a renda
per capita gira em torno dos
R$ 2.500, é apenas uma miragem. A sua realidade está no chão estéril e avermelhado de Santa Filomena, cidadela de 10 mil habitantes e renda per capita de míseros R$ 700 por habitante ? que fica a 100 quilômetros de Petrolina ?, com esgoto a céu aberto, casas de taipa e ruas de terra. Em Santa Filomena, quase na divisa com o Piauí ? que tem 194 dos seus 222 municípios em estado de emergência ?, o gado já está morrendo, sem pasto ou folhagens, e 95% da safra foi perdida. A macambira, um tipo de cacto, virou opção de alimento.

Retirantes. Da janela de sua casa de dois cômodos, dona Francisca viu quase todos os filhos partirem. ?Há 30 anos, eles tentam me levar embora. Nasci nessa casa, vou morrer aqui?, diz ela. Para cada sertanejo que resiste em abandonar sua terra, existem três que partem em busca de uma vida melhor nos grandes centros. Da grande e barulhenta família, só restaram dois filhos e um neto, Manuel, de 5 anos, que dona Francisca cria desde que ele nasceu, pois sua filha seguiu uma leva de retirantes logo após dar à luz. ?Será que o destino de Manuel será o mesmo que o meu? Será que ele vai crescer nessa aflição pela chegada da chuva todo ano??

Alheio aos temores da avó, o pequeno Manuel conta qual é a sua maior diversão: subir nos caminhões-pipa que vez por outra aparecem na região. ?É bom levar a água na casa das pessoas. Parece dia de festa?, diz o garoto. É uma ironia cruel saber que esse artigo raro no sertão, a água, brota nos pomares de Petrolina com um simples girar de dedos. O sucesso dos projetos de irrigação do São Francisco provocou mudanças decisivas na rota do êxodo rural na região do Polígono da Seca. Até a década de 70, era o ?Sul maravilha? que atraía os fugitivos da fome e da morte severina. A partir dos anos 80, cidades como Juazeiro, na Bahia, e Petrolina, que tem mais de 80% do perímetro urbano saneado, passaram a absorver parte dos retirantes da região. Eles chegavam (e ainda chegam) a pé, puxando um jegue, que equilibrava em cima do lombo os pertences da família.

Quando ouviu falar desse pedaço do sertão que tinha ficado verde, onde a terra era fértil e a água infinita, seu Orlando (Castro da Cruz) fez as malas e disparou para lá. Paulista de Ribeirão Preto, esse ex-motorista de ônibus foi na contramão das hordas de retirantes. Enquanto eles desciam para o Sul, seu Orlando subia para o Nordeste. Hoje seu Orlando é a mais perfeita tradução do milagre das águas no sertão. Ele faz parte da primeira geração de pequenos e médios empresários bem-sucedidos da bacia do São Francisco, que faturam mais de R$ 150 milhões em fruticultura por ano.

?Em 1984, juntei minha economias e comprei um lote de 6 hectares de terra irrigável em Petrolina para plantar uvas. Arrisquei tudo e valeu a pena?, diz seu Orlando. ?Enquanto no Sul, normalmente, há uma safra de uva por ano, aqui eu consigo fazer duas safras e meia. É o privilégio de quem tem sol e água o ano inteiro?, diz. ?Mais uma ironia. O mesmo sol que destrói e seca a vida no sertão, é o grande responsável pelo sucesso da agricultura de irrigação. A fórmula do plantio é simples: sol eterno e água na quantidade certa. Como o sol brilha o ano inteiro e a água é controlada ao bel prazer de cada agricultor, a abundância de frutas nos pomares é garantida.

Enquanto isso, em Dormentes, a apenas uma hora de carro de Petrolina, seu Ulices (Rodrigues), de enxada na mão, revolve a terra dura e empedrada. Casado, pai de quatro filhos, seu Ulices é um tipo raro no agreste. Politizado, atua em movimentos populares e quer mudar o seu mundo. ?Já levei muita surra de língua (bronca) de políticos e coronéis da região, mas não desisto?, diz ele. Seu Ulices olha para o céu pintado com aquele ?azul terrível, de endoidecer?, nas palavras de Graciliano Ramos no livro Vidas Secas, e diz: ?Vai ser uma estiagem daquelas, até os pássaros estão indo embora.?

 

Vai ser mesmo. Segundo especialistas em meteorologia, a seca deste ano
no Nordeste pode ser igual a de 1998, considerada uma das piores do século 20. É temporada de El Niño, fenômeno que aumenta a temperatura da água
e leva embora os ventos e as chuvas
do Pacífico Sul. Na maior parte do sertão nordestino, onde vivem cerca
de 21 milhões de brasileiros, o aviso
de uma longa estiagem veio no início de 2002. Toda a chuva que era esperada para os três primeiros meses do ano, caiu em janeiro. Parecia que o sertão iria se acabar em água. As enxurradas levaram embora as lavouras e as esperanças de um ano de boa colheita. Depois de janeiro, o sol aboletou-se no céu em uma espécie de reinado vitalício.

A convivência pacífica entre o sol e o sertanejo é o grande desafio deste milênio. Como acontece a cada seca, o Nordeste clama por soluções que erradiquem as mortes severinas, há tantos séculos impregnadas no sertão, e que tragam a seu Manuel (Raimundo Rodrigues), que corta as folhas espinhosas das palmas para alimentar seu gado raquítico e à sua filha, Rosiane, de 10 anos, que anda duas léguas para encontrar um filete de água barrenta, o mesmo sorriso de vida severina de seu Raimundo, de seu Eliseu,
de seu Orlando.