Camisa branca e calças largas de barra presa sob lustrosas botas de couro marrom. O dançarino bate os saltos no tablado de madeira para marcar o ritmo do malambo, dança típica da província argentina de Mendoza. Num dos passos, espana o pó dos sapatos com desdém. É uma provocação ao bailarino espanhol de flamenco que, ao lado do palco, assiste ao show. O desafio é aceito e, na cadência do sapateado típico de cada país, eles se enfrentam. Os músicos gritam, incentivando o duelo. Ao final, os bailarinos se abraçam e dançam juntos, cada um a seu estilo, mas em harmonia, hipnotizando o espectador. O espetáculo termina e os artistas são aplaudidos com furor pelos 300 convidados da festa de lançamento da vinícola Fournier, investimento em terras argentinas da família espanhola Ortega Gil-Fournier. A briga na dança é uma metáfora do que a Argentina faz hoje com os vinhos: enfrenta os mais renomados produtores do mundo. Espanhóis, franceses e chilenos já se renderam ao potencial de Mendoza, onde a indústria está apenas decolando. ?Apesar de jovem, o vinho argentino tem qualidade excepcional?, diz Pedro Marchevsky, engenheiro agrônomo da vinícola Dominio Del Plata e um dos maiores conhecedores da indústria local. ?Em degustações às cegas, em que os rótulos são cobertos, sua performance é tão boa quanto de diversos bordeaux franceses.?

Ao pé da Cordilheira dos Andes, Mendoza abriga 140 bodegas ? o nome em castelhano para vinícolas. Há 800 casas ativas na Argentina, nas quais são fabricados 786 rótulos. É uma produção impressionante e recente, pois a maioria tem menos de cinco anos de funcionamento. Os novos vinicultores dedicam-se exclusivamente aos vinhos finos. A sofisticação é fruto de novas técnicas, desenvolvimento tecnológico e também vultosos investimentos. A Fournier gastou US$ 6 milhões em sua nova vinícola, um monumento arquitetônico de três andares, instalado em Vale do Uco. Ali são feitos o Urban Uco, o Acrux e o Bcrux, rótulos classificados pelo respeitado crítico britânico Jancis Robinson entre os 15 melhores tintos do país.

VOCAÇÃO: A água rica em sais minerais que desce dos Andes
favorece o plantio das uvas
A receita do sucesso argentino inclui ainda a vocação das terras de Mendoza. Chove pouco na região, o que incentivou o uso da irrigação baseada em poços artesianos. O sistema traz vantagens: a água dos lençóis subterrâneos resulta do degelo dos Andes ? por isso é rica
em sais minerais. As altitudes entre 900 e 1,3 mil metros também são ideais para as parreiras. Tais características naturais atraíram até os franceses. O renomado enólogo Michel Rolland capitaneia um grupo de seis investidores, comandantes de centenárias famílias produtoras na França, que adquiriram 850 hectares de terras mendocinas. Com investimento de US$ 50 milhões, desenvolvem ali sete vinícolas, debaixo do rótulo Monteviejo. Embora suas parreiras sejam jovens, os vinhos produzidos na microrregião têm excelente qualidade. O Clos de Los Siete, feito com uvas Malbec, Merlot e Cabernet Sauvignon, recebeu 90 pontos em 100 na avaliação da prestigiada publicação Wine Spectator. O refinamento das marcas de Monteviejo é arte, também, de Marcelo Pelleriti, enólogo de 34 anos que foi escolhido por Michel Rolland por sua afinidade com a enologia sensitiva, aquela em que o segredo está em intuir corretamente o momento em que o vinho está pronto.

O Brasil, pela proximidade, é endereço privilegiado. É um dos princi-
pais alvos para consumo das mais recentes safras. A estratégia das novas vinícolas argentinas é ancorada na exportação. O índice de garrafas dedicadas ao mercado externo está acima de 90%. Desse total, boa parte deverá ser consumida pelos brasileiros. A importadora argentina Grand Cru abriu uma filial em São Paulo há dois anos e o faturamento da loja paulista já representa o dobro das vendas de Buenos Aires. Fundada por Victor Levy e seu filho Mariano, grandes amantes da bebida, a Grand Cru representa algumas das melhores vinícolas de Mendoza e trará para o Brasil, ainda este ano, safras promissoras. É o caso do tinto Doña Paula Malbec Seleção de Bo-
dega 2002, que chegará no final deste ano. A vinícola Doña Paula,
do grupo chileno Claro, prima pela técnica na produção. Seu vinho
é considerado semi-orgânico, pois a colheita é manual e somente
o uso do herbicida é mecanizado.

O atual sucesso dos argentinos segue uma tendência inaugurada
pela Catena Zapata, casa com três colheitas acima de 90 pontos, entre as melhores do mundo: Chardonnay Mendoza Alta Adrianna Vineyard 2001, Malbec Mendoza Catena Alta 2001 e Cabernet Sauvignon Mendoza Catena Alta Zapata Vineyard 1999. Agora,
outras marcas firmam-se no mercado na trilha aberta pela Zapata. ?A safra 2003 da Dominio del Plata será ainda melhor que as anteriores, graças a um período diferenciado de colheita?, diz Pedro Marchevsky. Vale a pena esperar. Susana Balbo, mulher do engenheiro, assina vinhos de grande reputação, como o Brioso, um vinho encorpado, de excelente estrutura. ?A safra 2001 do Brioso tem coloração púrpura intensa e o aroma sugere notas apimentadas e amoras silvestres,
com nuances de baunilha?, explica Mariano Levy, da Grand Cru. ?O paladar é redondo, com toques de pimenta, ameixa e amora, combinados com chocolate e tabaco?, continua. Para os leigos,
a tradução: é um vinho magnífico. Diante de argentinos como
esse, um conselho: não resista.

OS BONS TINTOS DA REGIÃO
Nas 140 casas da região há rótulos de nível mundial
ACRUX 2001
Vinícola Fournier
Doce, madeirado e frutado, de cor vermelha
intensa, com boa presença aromática.
R$ 160
LINDAFLOR 2002
Monteviejo
Cor intensa, aromas de ameixa e pimenta
negra e notas de noz moscada.
R$ 175
BRIOSO 2001
Susana Balbo
Bem encorpado e estruturado. Paladar com
toques de pimenta, chocolate e tabaco.
R$ 180