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1959. Palácio do Catete, Rio de Janeiro. Um grupo inflamado de manifestantes grita palavras de ordem contra o Fundo Monetário Internacional (FMI). O então presidente Juscelino Kubitschek acabava de anunciar o rompimento das negociações da dívida externa brasileira com o Fundo. Enquanto JK acena da sacada e sorri ao ser chamado de antiimperialista, um homem elegante e impecavelmente vestido entra pela porta dos fundos do palácio. Era o embaixador Walther Moreira Salles. Havia sido chamado às pressas. Juscelino pedia que, discretamente, o embaixador retomasse a conversa com o FMI. Nenhuma outra pessoa no Brasil seria capaz de consertar o rompante ufanista do arrependido JK. Moreira Salles tirou de letra. Com habilidade diplomática, o embaixador alinhavou o retorno do País à pauta do fundo internacional.

 

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Embaixador nos EUA, em 59: Apoio de Oswaldo Aranha e Amaral Peixoto

 

O episódio é um retrato fiel do que foi a vida de Walther Moreira Salles, falecido na manhã do último dia 27, aos 88 anos, em sua casa de veraneio em Araras, na serra fluminense. Fundador do Unibanco, o quarto maior banco privado do País, sua figura transcende a de um importante banqueiro. Moreira Salles foi, durante décadas, um personagem crucial da história econômica do País. Participou de quatro governos consecutivos, de Getúlio Vargas a João Goulart. Foi duas vezes embaixador do Brasil nos Estados Unidos. Negociou quatro vezes a dívida externa brasileira junto ao FMI. Circulou pelos principais salões e palácios do mundo. Foi sócio dos Rockefeller, conviveu com a elite política e econômica européia, era recebido no seleto clube dos empresários americanos. ?Para mim, não bastava ser um grande empresário. Sempre quis ser um grande empresário em um grande país?, definiu Moreira Salles em um dos longos depoimentos dados ao jornalista Luiz Nassif, que trabalha na biografia do banqueiro.

 

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Posse no ministério, em 61: entre San Thiago Dantas e Clemente Mariani

 

Há outra história que ilustra bem o peso da sua existência. Em 1964, por razões pessoais, o presidente Costa e Silva decidiu cassar o embaixador e perguntou a opinião do então ministro Delfim Netto. A resposta de Delfim: ?Teremos apenas problemas com toda a imprensa internacional, com os banqueiros estrangeiros e com os governos dos Estados Unidos e da França.? Costa e Silva desistiu da idéia. Naquele momento, o presidente linha-dura descobria o que muitos já sabiam: o embaixador estava acima do bem e do mal. Moreira Salles construiu em torno de si uma reputação de integridade inabalável. No mundo dos negócios, era um cavalheiro cuja palavra era uma só. Quem negociava com ele dormia tranqüilo. Jamais seria passado para trás. Na década de 60, foi sócio de Nelson Rockefeller nas incursões do bilionário americano pelo mundo dos negócios no País. A principal delas foi a criação do fundo Crescinco, que pavimentou a estrada para o desenvolvimento do mercado brasileiro de capitais. O Brasil entrava na roda financeira internacional pela porta da frente.

 

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Banqueiro hábil, em 82: encontro com o economista Eugênio Gudin

 

A influência de Moreira Salles também era grande no território nacional. Ele nasceu em 1912, na cidade de Pouso Alegre (MG) e a partir dos 12 anos viveu em Poços de Caldas (MG). Nessa época, Poços era uma estância chique, freqüentada pela elite política e artística brasileira. Fez amigos como Ari Barroso, que tocava nos cassinos da cidade. Ao mesmo tempo, conquistava espaço no clã dos Vargas. Chegou a namorar Alzira Vargas, filha de Getúlio. Anos mais tarde, o primogênito Walther recebeu do pai, João Moreira Salles, a incumbência de assumir a direção da Casa Bancária Moreira Salles, em Poços. O embaixador foi o grande estrategista na transformação da pequena casa bancária no titã Unibanco. Contou com a valiosa ajuda do sócio Pedro di Perna, presidente executivo do banco e responsável pelo dia-a-dia da instituição. Enquanto isso, Walther fazia o circuito Poços-Rio-São Paulo-Nova York buscando novos negócios, conversando com chefes de governo, freqüentando luxuosas recepções.

 

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Em Poços de Caldas: homenagem dos funcionários na cidade em que começou seus negócios

 

Apesar da jornada intensa, conseguia espaço para acompanhar o crescimento dos quatro filhos, Fernando, os cineastas Walter e João e Pedro, presidente do Conselho do Unibanco. Duas semanas antes de sua morte, Walther recebeu a visita dos quatro filhos e cinco netos. Não havia nenhum motivo especial. A feliz coincidência pode ser entendida como uma dessas gentilezas que o destino concede a poucos. Como também o fato de ter morrido em casa, ao lado da mulher Lúcia, longe dos horrores de uma UTI. O embaixador mereceu essa deferência. Sua vida foi sempre traçada pela discrição. Nunca aparecia na imprensa. Nos últimos anos, brincava com os amigos: ?Sou apenas o pai do Waltinho?, referindo-se ao diretor do premiado filme Central do Brasil.

 

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O último Adeus: na casa em Petrópolis, enfarte tira a vida do embaixador, aos 88 anos

 

Uma das grandes alegrias de sua vida foi a criação do Instituto Moreira Salles, entidade que trouxe um novo fôlego ao panorama da cultura brasileira. Em 1991, ao anunciar o seu afastamento da presidência do conselho do Unibanco, ele citou o escritor Jorge Luiz Borges: ?A vida é feita de momentos felizes.? Garantia que estava vivendo um dos grandes momentos da sua existência ao anunciar a criação do Instituto. O seu apreço pelo projeto era tão grande que, em 1999, cedeu a sua luxuosa casa, no Alto da Gávea, no Rio de Janeiro, para a instalação da quarta unidade do Instituto (as outras três estão em São Paulo e em Poços de Caldas).

Durante mais de 30 anos, pisar no chão de mármore rosa da casa dos Moreira Salles era privilégio para poucos. A mansão do dândi elegante, que não desabotoava o paletó nem para sentar, foi palco de conversas reservadas entre políticos e empresários influentes e de sofisticados jantares da elite brasileira. Fincada numa área de 10 mil metros quadrados, com direito a jardins assinados por Burle Marx, a casa (que esteve fechada por 15 anos) foi reformada para receber visitantes e expor obras de arte da coleção pessoal do embaixador, como quadros de Portinari e o acervo fotográfico de 65 mil imagens do Rio de Janeiro no século 19. Com credenciais únicas num país tão órfão de grandes figuras globais, Moreira Salles marcou sua trajetória com o brasão da nobreza e da integridade no cenário da história brasileira.