A empresa têxtil Matrics, localizada em Apucarana, no Paraná, há muito tempo não sabe o que é recessão. É lá que, a cada mês, são produzidos cinco mil bonés e duas mil camisetas para um cliente especial: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Estima-se que a receita mensal com a encomenda seja de R$ 25 mil, representando um faturamento de R$ 300 mil por ano. ?Eles sempre nos pagaram em dia?, conta Patrícia Lima, responsável pelo atendimento ao MST. ?Nunca atrasaram uma fatura.? Há oito anos, a Matrics fornece roupas, chapéus e bandeiras para os militantes do movimento. Nenhum cliente da empresa cresceu tanto em tão pouco tempo. E aquilo que, no início, despertava uma certa desconfiança nos donos da Matrics, hoje é o carro-chefe da produção.

Há dias em que todos os 45 funcionários dedicam-se exclusivamente ao MST. O gasto dos sem-terra com as camisetas e bonés ? o mesmo que causou celeuma ao ser usado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva ? revela um lado pouco conhecido de uma organização que vem chacoalhando o País. É a versão S/A do MST. Hoje, os sem-terra atuam como se formassem uma grande corporação empresarial, com todas as divisões internas: produção, vendas, logística, finanças, treinamento e marketing. E, como têm capacidade para promover ações relâmpago em diversos pontos do território nacional, muitas delas simultâneas, os sem-terra reúnem qualidades que faltam a muitas empresas: liderança, disciplina e determinação. Só na última semana, houve invasões coordenadas em Pernambuco, no Paraná e em Minas Gerais. ?Temos de admitir que, como uma organização econômica, eles são muito competentes?, reconhece o adversário Luiz Hafers, conselheiro da Sociedade Rural Brasileira.

Na retórica, o MST S/A ainda é bastante duro e agressivo. Os líderes pregam a ocupação à força dos latifúndios, a ampla reforma agrária e até mesmo uma revolução socialista. No entanto, na prática, muitas das iniciativas do movimento são cem por cento capitalistas. O MST administra um caixa milionário, explora o valor da sua marca como poucas empresas, recolhe vastas contribuições internacionais, vende e exporta seus produtos, faz a intermediação financeira nos empréstimos agrícolas governamentais e treina intensamente seus quadros profissionais. Um exemplo é a construção de um centro de formação em Guararema, São Paulo, ao custo de R$ 7,4 milhões. Assim como muitas multinacionais, o MST também terá sua ?universidade corporativa?, batizada como Escola Nacional Florestan Fernandes, em homenagem ao sociólogo que inspira o movimento. Uma outra escola já funciona em Caçador, Santa Catarina.

No organograma do poder, a corporação também tem o seu CEO. Ainda que não exista formalmente o cargo de presidente, o líder incontestável, desde a fundação do movimento, em 1984, é o gaúcho João Pedro Stédile, que, há poucos dias, deixou os produtores rurais em estado de alerta ao dizer que existem mil trabalhadores sem-terra para cada latifundiário e conclamou seu exército de 80 mil famílias acampadas a novas invasões. Abaixo de Stédile, há um número restrito de executivos, como Gilmar Mauro, de São Paulo, Roberto Baggio, do Paraná, e Mário Lill, do Rio Grande do Sul. Estes três fazem parte da direção central e Lill, que chegou a entregar uma bandeira dos sem-terra ao palestino Yasser Arafat, é quem cuida das finanças. Descendo na hierarquia, chega-se aos 90 coordenadores regionais em 23 dos 27 Estados brasileiros e aos militantes ? quase todos assalariados. Mas de onde vem o dinheiro para manter tanta gente em acampamentos, tantos quadros internos e promover ocupações em regiões tão remotas? ?Nós não temos controle sobre o dinheiro, porque é tudo descentralizado e cada regional recolhe os recursos que usa nas suas atividades?, garantiu Lill à DINHEIRO.

Na prática, ainda que haja um certo grau de delegação de poderes, a descentralização não é absoluta. DINHEIRO apurou que o MST S/A tem quatro grandes fontes de recursos. Uma das principais é o próprio setor público, especialmente o governo federal. Por meio de convênios com ministérios como Desenvolvimento Agrário, Trabalho e Educação, o movimento tem acesso a verbas próximas a R$ 8 milhões por ano. São recursos, na maioria dos casos, para treinamento e assistência técnica nos assentamentos. Em segundo lugar, vêm as doações nacionais, da Igreja Católica progressista, e internacionais. O MST S/A conta com enorme simpatia das ONGs européias e algumas delas, como a alemã Caritas e a francesa Frères des Hommes, estão ajudando a levantar a Escola Nacional Florestan Fernandes. Cerca de 65% dos R$ 7,4 milhões orçados vêm de fontes européias. Uma terceira fonte de renda é a cobrança de 1% do que é produzido nos assentamentos. Já existem, organizadas, 150 cooperativas e agroindústrias ligadas ao MST em todo o País. Cada uma fatura, em média, R$ 30 mil mensais e algumas fornecem a multinacionais, como a Parmalat e a Ceval. As cooperativas têm uma receita anual próxima a R$ 54 milhões por ano e o 1% representa R$ 540 mil. Por último, há ainda um ?pedágio? de 3% cobrado na liberação de empréstimos para a agricultura familiar ou para projetos habitacionais.

Ocupando o orçamento. Somando tudo, chega-se a uma receita de R$ 20 milhões por ano, valor considerado razoável pelo deputado e ex-ministro do Desenvolvimento Agrário, Raul Jungmann (PMDB-PE). ?O MST invade terras com o propósito, muitas vezes, de ocupar o orçamento federal?, disse Jungmann à DINHEIRO. A onda recente de invasões, segundo ele, faz parte dessa estratégia. Até agora, o governo Lula assentou apenas 3 mil famílias. O orçamento da reforma agrária neste ano foi cortado de R$ 400 milhões para apenas R$ 160 milhões. Em 2002, cerca de 100 mil famílias receberam títulos de posse e esperava-se que, na era Lula, a velocidade da reforma agrária, em vez de desabar, crescesse.

Ao mesmo tempo em que invade fazendas, o MST S/A fortalece sua marca por meio de um amplo aparato de marketing. O movimento tem um jornal mensal, com tiragem de 20 mil exemplares, uma revista trimestral com 10 mil unidades e ainda criou diversas rádios nos assentamentos. Nas lojas do movimento, são vendidos bonés, camisetas e bolas de futebol com a marca MST, além dos doces, queijos, biscoitos e dos produtos ligados a militantes famosos, como o fotógrafo Sebastião Salgado e o compositor Chico Buarque (veja quadro abaixo). O sem-terra Eli César, 28 anos, responde pela loja de São Paulo, que gera uma margem de lucro considerável. ?Gastamos
R$ 3 mil na compra dos produtos e vendemos R$ 16 mil a cada mês?, disse à DINHEIRO. Muitos dos itens à venda nas lojas são também encontrados no site do MST, com versão para seis países europeus: Alemanha, França, Espanha, Itália, Suécia e Inglaterra. Entre os livros, constam ícones do pensamento de esquerda, como Karl Marx, Rosa Luxemburgo e Antônio Gramsci, e até mesmo títulos feministas como A Nova Mulher e a Moral Sexual, de Alexandra Kolontay. ?O MST conseguiu criar sua identidade corporativa e se tornou uma marca muito forte, reconhecida no Brasil e no mundo?, disse à DINHEIRO Eduardo Tomiya, diretor de avaliação de marcas da Interbrand, consultoria especializada em marketing.

Cachaça e turismo. O MST S/A, que já assentou 350 mil famílias em todo o País, também diversificou suas atividades e descobriu novos nichos de mercado. Um exemplo é a destilaria Paladar, que produz cachaça na Bahia. ?Queremos exportá-la para a Alemanha e a Itália?, disse Júlio César Campos, 36 anos, coordenador do setor de produção do MST baiano. Outro é a agência de turismo rural Turismo Solidário, também conhecida como MSTur, conduzida por Miguel Stédile, filho do líder da organização, o que já aponta um certo ar de empresa familiar na corporação. O foco da MSTur consiste em organizar visitas a assentamentos, onde são oferecidos churrascos e chimarrão aos visitantes. ?Durante o último Fórum Social de Porto Alegre, levamos mais de 2 mil turistas, a maioria estrangeiros, aos assentamentos?, revelou Stédile à DINHEIRO. Lá, eles conhecem produtos sem agrotóxicos, que são até exportados para vários países sob as marcas Sabor do Campo e Terra & Frutos, entre outras. E, como toda empresa, o MST sempre prospecta novos mercados potenciais. ?Eles são organizados e pesquisam as melhores áreas para atuar?, aponta Francisco Graziano, ex-presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra. Foi isso que aconteceu, há vários anos, quando o sem-terra José Rainha, recentemente condenado à prisão, foi deslocado do Espírito Santo para atuar no Pontal do Paranapanema, em São Paulo, uma das regiões mais conflagradas do País. ?Eles podem ser acusados de tudo, menos de desorganização.? Graziano aponta que uma das principais falhas do movimento é a dificuldade para reter os assentados no campo. ?Mais de 30% vendem as terras logo depois que recebem os financiamentos e os títulos de posse?, diz ele.

Apesar das controvérsias, o MST S/A tem tudo para alcançar aquilo que é o sonho de muitas corporações empresariais: a perpetuidade. À medida que a reforma agrária avança, novas cooperativas surgem, assim como novas fontes de recursos. O financiamento proveniente da Europa é um dos pontos mais polêmicos e que mais assustam os grandes produtores rurais. ?Os europeus são nossos principais concorrentes e dão dinheiro a uma organização que tem como propósito tumultuar a agricultura brasileira?, aponta João de Almeida Sampaio, presidente da Sociedade Rural Brasileira. Ele lembra que o agronegócio gera um superávit de US$ 24 bilhões por ano no comércio exterior brasileiro. ?Nós queremos uma CPI no Congresso para abrir a caixa-preta do MST.? Mas mesmo que o movimento continue avançando, é pouco provável que o MST S/A consiga promover a revolução camponesa e socialista no Brasil. Pesquisas da área de inteligência do governo federal constataram que, assim que se tornam donos de terras, mais de 70% dos sem-terra passam a defender incondicionalmente a propriedade privada e ? quem diria ? o próprio capitalismo. Pouco a pouco, o ímpeto revolucionário é dissolvido e dá lugar a discussões sobre números contábeis, capital de giro, geração de caixa e até mesmo lucro.