27/11/2017 - 8:42
Na manhã do dia 13, Gabriel, de 8 anos, acordou com fome. Queria um pedaço de pão, mas não havia o suficiente para todos os irmãos. Comeu, então, um prato de mingau de fubá. A irmã de 13 anos cozinhou arroz para o almoço, mas ele recusou porque não tinha mistura para acompanhar.
Por volta das 12h30 daquela segunda-feira, o menino se sentou numa fossa de concreto na beira da rua com os três irmãos para esperar o ônibus escolar. Ficaram lá por alguns minutos até a chegada da condução. O percurso de 30 quilômetros entre o Paranoá Parque, conjunto habitacional do Minha Casa Minha Vida, na periferia, e a escola pública onde estuda, no Cruzeiro, dentro do Plano Piloto de Brasília, durou cerca de meia hora.
Ao chegar, Gabriel reclamou de dores no peito e desmaiou duas vezes, segundo a professora Ana Carolina Costa, que o socorreu. Consternada com as queixas de fome que escuta dos alunos desde o início do ano, procurou a imprensa. A notícia viralizou.
A história de Gabriel é parecida com a de outras famílias de baixa renda que, em outubro de 2016, se mudaram para o Paranoá Parque. Elas foram forçadas pelo governo do Distrito Federal a deixar uma ocupação no Noroeste, região nobre da capital federal. Desde então, Gabriel vive em um apartamento de 46 metros quadrados com a mãe, Leidiane Amorim, de 29 anos, o namorado dela e cinco irmãos, de 3 a 13 anos. Eles se acomodam nos poucos móveis – uma cama de casal e outra de solteiro, um colchão de casal e um sofá. Leidiane conta que, para comprar o único guarda-roupa que possui, teve de “tirar comida da boca das crianças”. O restante dos pertences acaba espalhado sobre uma poltrona e um varal de roupas, na sala, que tem as paredes pintadas em tons fortes de laranja e rosa, e é o local onde a família assiste à TV.
Leidiane viveu na ocupação do Noroeste durante mais de dez anos como catadora de lixo reciclável e recebia doações da igreja e de conhecidos quando faltava o que comer. Lá, criou seis filhos em um barraco de madeira que tem energia elétrica apenas à noite. Gabriel cresceu em meio à vegetação do Cerrado e ao cheiro forte do lixo.
Apesar disso, ela conta que as condições de vida eram melhores naquela época, pois tinha oportunidade de trabalho. Segundo os moradores da ocupação, os filhos de Lelê, como é conhecida, eram bem alimentados e frequentavam a escola. Até o ano passado, estudavam em um colégio no setor militar.
As crianças não gostavam da antiga moradia e riem quando escutam a palavra “casa” para se referir ao barraco de apenas um cômodo, mas dizem que havia mais comida na ocupação. Também sentem falta da escola antiga, que oferecia mais de uma refeição ao dia.
Após ser selecionada para ocupar o apartamento de dois quartos no Paranoá, Leidiane não conseguiu arrumar outro emprego e passou a viver com os cerca de R$ 1 mil que recebe de programas assistenciais. O dinheiro, conta, é usado para financiar a moradia (R$ 80) e pagar água (R$ 138) e condomínio, além de quitar dívidas antigas.
Com a mudança e a falta de escola, Gabriel e três irmãos foram estudar em uma unidade mais distante. Até hoje, os filhos mais novos, de 3 e 6 anos, não conseguiram vaga. Este ano, Leidiane tentou voltar para a ocupação para trabalhar como catadora, mas desistiu porque temia perder o apartamento nas vistorias realizadas pelo governo. Quando a mãe está fora, é a irmã mais velha que assume o cuidado com a casa e os irmãos. A menina, de 13 anos, conta que a família não costuma tomar café da manhã, porque faltam alimentos, mas normalmente almoça arroz, feijão e carne.
Cenário comum
Embora o governador Rodrigo Rollemberg (DF) tenha declarado que o caso de Gabriel era reflexo de um problema pontual da família, a conselheira tutelar Andreza Gomes afirma que a maioria dos moradores do conjunto habitacional enfrenta dificuldades. “Não é só a Leidiane, o perfil das famílias do Paranoá Parque é assim”, diz. “Eles construíram uma cidade dentro de uma outra. O Paranoá Parque não tem comércio, hospital, escola, não tem nada. Se a coisa já estava complicada, no Paranoá ficou insustentável”, avalia Andreza.
Além de não ter escola e postos de saúde e policial, o Paranoá Parque sofre com falta de paradas de ônibus e numeração nas avenidas, o que impossibilita a entrega de correspondência. Por causa do crescimento de assaltos, os moradores juntaram dinheiro e instalaram portões eletrônicos nos blocos dos prédios por conta própria.
Construído para atender famílias com renda mensal de até R$ 1,6 mil, o Paranoá Parque foi inaugurado em 2014 como o primeiro empreendimento do Distrito Federal financiado pelo Minha Casa, Minha Vida. Desde então, mais de 6 mil apartamentos foram entregues.
Amiga de Leidiane desde quando ela morava na ocupação do Noroeste, Raimunda Nonato vive no local há 12 anos e agora está na fila do programa Minha Casa Minha Vida. Diz, porém, que aceitará se mudar apenas se houver garantia de emprego e creche. “A gente não quer só moradia, a gente quer dignidade”, afirma. Na última tentativa de desocupação da área, passou três dias escondida no mato com a família, protegida por uma lona, até conseguir reerguer uma casa de madeira menor, onde há uma cama e um fogão.
Maria Tássia da Silva também conseguiu, há cerca de um ano, um apartamento no Paranoá Parque, mas continua morando na ocupação do Noroeste durante a semana por causa do trabalho e volta para o condomínio aos finais de semana. Há três meses, o casal não tem dinheiro para comprar um botijão de gás, que custa cerca de R$ 80, e instalou do lado de fora do barraco um fogão a lenha para cozinhar. “Ninguém quer viver no mato. Só vive no mato quem precisa”, diz. Maria e o companheiro são de Iguatu, pequeno município maltratado pela seca no sertão do Ceará, e chegaram à ocupação há mais de uma década.
Do sertão para Brasília
É exatamente de Iguatu que veio Leidiane. Aos 15 anos, grávida da segunda filha, a jovem percorreu quase 2 mil quilômetros de ônibus até Brasília. Na época, a passagem custava R$ 30. O filho mais velho, hoje com 14 anos, ficou com a avó.
O pai de Gabriel, Francisco Firmino, veio da mesma Iguatu. Ele e Leidiane se conheceram na adolescência, quando tiveram um breve relacionamento. Alguns anos depois, em Brasília, se reencontraram na ocupação e tiveram um filho. Francisco tem seis filhos de outros relacionamentos e nenhum vive com ele.
No dia em que Gabriel passou mal, a direção da escola não conseguiu contato com Leidiane e ligou para o pai. Francisco buscou o filho e ficou com ele durante alguns dias para fazer exames médicos. O pai trabalha duas vezes na semana como carregador na Centrais de Abastecimento do Distrito Federal e mora de favor na casa da mãe da atual mulher. A repercussão do caso fez com que Leidiane recebesse diversas doações de alimentos. A mãe também passará a receber um auxílio vulnerabilidade de seis parcelas de R$ 408 do governo do DF.
Procurado, o governo informou que vai oferecer almoço e rever o cardápio oferecido para crianças em situação de vulnerabilidade social na escola onde Gabriel estuda, mesmo a crianças que não estejam no período integral. Também anunciou a criação de um colégio para atender à população do Paranoá Parque e Itapoã, na periferia da capital, ainda sem previsão de inauguração.
Exatamente uma semana após o desmaio de Gabriel, ele retornou à casa da mãe. Ao descer do ônibus escolar, seus passos foram acompanhados por jornalistas até a porta do apartamento. Os observadores permaneceram apontando as câmeras para as janelas do edifício de três andares, mas ninguém, além dos vizinhos curiosos, se atreveu a aparecer. Alguns moradores se espantaram: desde quando passar fome é novidade por aqui? As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.