O movimento negro está em pé de guerra com o prefeito do Rio, Marcelo Crivella – bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus. Nesta semana, o prefeito vetou o projeto de lei 346, que declara o Quilombo da Pedra do Sal, na zona portuária, Patrimônio Cultural Imaterial do Município. O local, considerado o berço do samba, é um dos mais importantes da história dos negros no País.

Foi a gota d´água numa relação para lá de conturbada. No início do ano passado, a Prefeitura suspendeu o patrocínio da Casa do Jongo, no Morro da Serrinha, na zona norte. O local chegou a ficar três meses fechado, deixando de atender cerca de 400 crianças da comunidade.O jongo, manifestação cultural de matriz africana, recebeu o título de patrimônio imaterial do Iphan em 2005. Na mesma época, a ONG Instituto dos Pretos Novos também ficou sem verbas.

Parte do patrocínio a blocos e escolas de samba foi cortado pelo prefeito, que desde que assumiu o cargo não prestigiou o carnaval do Sambódromo – um dos principais eventos culturais e turísticos da cidade. Crivella demorou também a renovar o contrato da Feira das Yabás, em Madureira, na zona norte, especializada em culinária e música de diferentes partes da África. Na própria Pedra do Sal, rodas de samba tradicionais chegaram a ser suspensas.

“A iniciativa para este projeto de lei partiu do próprio movimento negro, que veio me procurar para propor algo em relação à Pedra do Sal, justamente porque alguns eventos rotineiros estavam sendo proibidos”, explicou o vereador Fernando William (PDT), autor do PL vetado.

A prefeitura nega as acusações e alega uma questão técnica para o veto ao projeto. “Os atos de tombamento de bens materiais e registro de bens imateriais como patrimônio cultural são competência exclusiva do poder executivo, nos três níveis de governo”, esclareceu, em nota oficial.

“Dessa forma, qualquer proposição originada da Câmara dos Vereadores tem o ‘vício da iniciativa’ e é considerada inconstitucional. Pela necessária separação dos poderes, o prefeito ‘se vê forçado a vetar a matéria’, independentemente do seu mérito.”

O escritor, compositor e advogado Nei Lopes garante que inconstitucional é a decisão do prefeito, a quem acusou de racismo. “Trata-se de um ato não só lesivo à história dos negros no Rio de Janeiro e no Brasil, quanto um descumprimento ao que determinam os artigos 215 e 216 da Constituição Federal”, sustentou Lopes. “Esses artigos garantem a proteção do Estado sobre tudo o que represente referência à identidade e à memória dos afrodescendentes como formadores da sociedade brasileira. É um ato discriminatório, racista, pouco inteligente e, acima de tudo, inconstitucional.”

Patrimônio

A Pedra do Sal faz parte do sítio arqueológico do Cais do Valongo, reconhecido como Patrimônio Mundial da Humanidade no ano passado, pela Unesco, como um local de “memória sensível” – mesmo caso do campo de extermínio nazista de Auschwitz, na Polônia, e de Robben Island, na Cidade do Cabo, na África do Sul, onde Nélson Mandela ficou preso.

“O Valongo é o mais importante, o mais significativo sítio de memória da diáspora africana nas Américas; é o único vestígio material que temos do desembarque de africanos escravizados”, explica o antropólogo Milton Guran, integrante do comitê científico internacional do projeto Rota do Escravo, da Unesco, que busca mapear os caminhos da diáspora pelo mundo. Pelo menos 2,4 milhões de escravos passaram pelo cais.

“O cais não simboliza só a parte material, imediata, o porto de desembarque, mas toda a tragédia do tráfico no Atlântico, esse crime contra a Humanidade.” Segundo o antropólogo, todos os outros sítios reconhecidos como patrimônio mundial ligados à escravidão estão na África. E esta é uma diferença crucial no que diz respeito ao reconhecimento do estado da escravidão no Brasil.

A Pedra do Sal, por sua vez, era o local onde os negros se reuniam para tocar, para jogar capoeira e também para fazer seus cultos religiosos.

“Do ponto de vista da Unesco, o fato de o prefeito vetar o projeto de lei que transforma a Pedra do Sal em patrimônio cultural imaterial do município não muda nada”, explica Guran. “Mas é um tremendo desrespeito porque ele está se recusando a assumir um local reconhecido mundialmente, parte de um bem tombado, um patrimônio da Humanidade.”

Para Guran, Crivella não governa para a cidade, como um todo. “Ele governa para um determinado projeto político teocrata, racista e excludente”, disse o antropólogo. “O veto se inscreve dentro dessa política.”