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No próximo dia 28 o município de Franca, no interior de São Paulo, vai comemorar 182 anos de existência. Mas a festa que ocorre tradicionalmente na cidade dos calçados será ofuscada desta vez pela agonia financeira de uma de suas filhas mais ilustres. A Samello, sinônimo de sapatos masculinos, empresa que trouxe os primeiros mocassins para o Brasil, criadora dos docksides e uma das maiores exportadoras de calçados do País, parou, vergada sob o peso de uma dívida de R$ 55 milhões, um caixa vazio e a queda drástica das encomendas internas e externas. Trezentos dos quatrocentos funcionários da empresa foram embora. Não agüentaram o atraso salarial de três meses. As máquinas da fábrica de Franca estão desligadas há um mês e o mesmo ocorre com a unidade de Santa Rita, na Paraíba. As vendas, que chegaram a R$ 180 milhões em 2004, não devem ultrapassar os R$ 50 milhões neste ano. ?Vivemos a situação mais complicada em 80 anos de história, mas vamos fazer o possível e o impossível para reerguer a Samello?, disse à DINHEIRO o presidente da empresa, Miguel Sábio de Mello Neto. O possível foi anunciado na quinta-feira 16. A empresa entrou em recuperação judicial, auxiliada pelo advogado Sérgio Bermudes. Assim, ganha fôlego para tentar se capitalizar, retomar a produção e saldar pendências trabalhistas e com fornecedores.

Na terça-feira 14, um dia após as mais de 300 demissões na empresa, o único movimento que se via na sede da Samello era o de poucos ex-funcionários tentando obter informações a respeito de seus créditos trabalhistas, planos de saúde e demais benefícios. ?Já avisei lá em casa: ninguém pode ficar doente?, disse um deles, indignado com a inadimplência da Samello com o seguro-saúde. Na recepção improvisada na porta da fábrica, um funcionário nervoso repetia o discurso: ?Hoje, não há informação nenhuma. Podem voltar para suas casas.? Triste cenário para uma companhia que já empregou mais de três mil pessoas, que chegou a produzir 12 mil pares por dia, que fez sapatos para grifes como Prada e Ralph Lauren e que serviu de escola para vários calçadistas do País. Segundo um funcionário que permanece na companhia, as máquinas serão ligadas de vez em quando para atender a um ou outro pedido, enquanto existir estoque de couro, cadarços e solados. ?Aí é esperar o que vem pela frente?, resignou-se.

Três razões explicam a derrocada da maior marca de calçados masculinos do País. Assim como ocorreu em todo o setor, a fabricante sofreu com a valorização do real frente ao dólar, especialmente nos últimos dois anos. Isso porque 65% de seu faturamento está atrelado às exportações. Para piorar o cenário, a concorrência com os chineses também minou as finanças da companhia e a fez perder contratos preciosos no Exterior. ?Enquanto um sapato de couro brasileiro vai ao mercado a US$ 76, um sintético chinês chega às prateleiras a R$ 14?, diz Ivânio Batista, executivo da Abicalçados, a entidade que reúne o setor. ?Assim é impossível competir.? O quadro atual é mais do que conhecido entre os calçadistas e já produziu, nos últimos anos, outras vítimas na região. Hoje existem cerca de 780 empresas na cadeia produtiva de calçados de Franca. Há dois anos, eram quase 900 companhias. O número de empregados do setor também caiu drasticamente desde 2004 ? de 24 mil para 14 mil. ?A conjuntura econômica afetou vários fabricantes. A Samello não foi exceção?, afirma Jorge Donadelli, presidente do Sindicato das Indústrias de Franca.

Mas não foi só a conjuntura que fez as máquinas pararem na Samello. Problemas internos acabaram sufocando a empresa. A começar pela disputa familiar. Atualmente, 13 membros do clã atuam no grupo, a grande maioria no conselho de administração. Segundo um empresário extremamente ligado aos Sábio de Mello, tornou-se quase impossível nos últimos anos conciliar interesses de 13 pessoas que pensavam de modo diferente. ?A guerra de egos acabou afundando a Samello?, comentou. ?Em vez de se unirem e tomarem decisões rápidas para minimizar os problemas conjunturais, os parentes continuavam guerreando. Alguns preferiram jogar pólo e comprar iates em vez de cuidar de um patrimônio de 80 anos. O resultado da má gestão financeira está aí.? Houve, em 2004, uma tentativa de profissionalizar a companhia, entregando o comando ao executivo Renato Furtado, ex-Lucent. Não deu certo e Miguel Sábio de Mello Neto assumiu o leme. ?Mas ele já assumiu quando a Samello estava enfraquecida, com as vendas em queda e sem caixa. Miguel é um sujeito competente, mas precisa de tempo para trabalhar?, diz o empresário.

Com a recuperação judicial, a Samello tem seis meses de ?blindagem?. Durante esse período, os credores não poderão pressioná-la e todas as ações judiciais serão suspensas. ?O objetivo da medida judicial é dar tempo e condições para o grupo se capitalizar?, informa a advogada Simone Barros, da área de recuperação de empresas do escritório Sérgio Bermudes. A família ? agora unida depois do caos ? está empenhada em resolver as questões emergenciais. O clã tem um patrimônio imenso, que inclui, entre outros bens, algumas fazendas e centenas de imóveis no Brasil todo. ?Estamos vendendo gado nelore e eucalipto para quitar as dívidas trabalhistas?, revela um dos membros da família ouvido por DINHEIRO. O gado nelore é criado na fazenda Sudamata, situada em Tangará da Serra (MT). Trata-se de uma área de 11 mil hectares onde a família também cultiva café e tem projetos para cana-de-açúcar. A propriedade, avaliada em R$ 60 milhões, foi colocada à venda. Na semana passada, um grande agricultor de Ribeirão Preto se interessou pelo negócio. Mas nada foi fechado. Além da propriedade matogrossense, os Sábio de Mello possuem outra fazenda em Cristais Paulista, a dez quilômetros de Franca, que também será negociada. Vale R$ 20 milhões. Lá, o clã cultiva café, soja e milho, cria gado e mantém 300 alqueires de eucalipto, que estão sendo oferecidos no momento à VCP. ?Ainda estamos conversando?, afirma Miguel Neto. ?Não se vendem fazendas e imóveis de um dia para o outro. É preciso ter paciência.?

Enquanto negocia os bens da família, Miguel Neto tenta arregimentar parceiros capazes de capitalizar a empresa. Chegou a viajar ao Exterior em busca de alguém disposto a injetar dinheiro na Samello e vem conversando diariamente com parceiros do setor calçadista no País. O que pode ajudar também é que pelo menos uma empresa coligada à Samello exibe boa saúde financeira. Trata-se da MSN, fabricante de solados. A companhia, dirigida por Wagner Sábio de Mello (tio de Miguel Neto), está com vendas crescentes no mercado interno e possui parcerias importantes no Exterior. ?A Samello tem grandes chances de recuperação. Será preciso, é claro, redimensionar a operação, mas existe patrimônio para negociar, bons contatos internacionais e uma marca de prestígio?, diz a advogada Simone. Miguel Neto e toda a cidade de Franca gostariam de ter a mesma certeza.

Colaborou Lílian Cunha

SAMELLO EM NÚMEROS

R$ 30 milhões foi o faturamento nos primeiros nove
meses do ano. Em 2004, antes do problema cambial, as
vendas chegaram a R$ 180 milhões

PLACAR ATUAL
R$ 50 milhões em dívidas com fornecedores

R$ 5 milhões em dívidas trabalhistas
 

 

Empresa trouxe os primeiros mocassins para o Brasil
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Família tenta vender duas fazendas
por cerca de R$ 80 milhões
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Prestígio: Samello fez sapatos para grifes
como Prada e Ralph Lauren