DINHEIRO ? Como a sra. vê o atual estágio das negociações
da Alca?
LORI WALLACH ? Há conflitos profundos e irreconciliáveis entre países diferentes e regiões diferentes, e o que estamos vendo agora é que esses conflitos estão vindo à tona. Estados Unidos e Canadá acreditam, por exemplo, que os outros países deveriam submeter suas regras de política interna aos interesses do comércio internacional. Itens como propriedade intelectual, limite para uso de política industrial, regulamentação de investimentos e de serviços dentro do país e liberalização de compras governamentais deveriam ser regulamentados pela Alca. Mas nós sabemos que países como o Brasil têm uma visão muito diferente sobre isso.

DINHEIRO ? Quais são os pontos mais negativos da estratégia americana?
LORI ? Os EUA estão propondo para a Alca regras iguais ao do Nafta, que permitem investimentos em todos os setores. Criou-se uma definição muito ampla do que é investimento estrangeiro na Alca. Ela vai desde o investimento direto propriamente dito até a aplicação em moeda, terras e qualquer outro tipo de aplicação. Essa definição ampla dá direitos especiais aos investidores estrangeiros sobre toda a economia. No caso do Brasil essas regras permitiriam, por exemplo, que os estrangeiros obtivessem minas, petróleo, madeira e terra na Amazônia. Ou que estariam livres para exigir proteção da política industrial brasileira. É óbvio que isso não é de interesse da maioria dos países em desenvolvimento.

DINHEIRO ? Por que o Nafta não é um bom exemplo para o Brasil?
LORI ? O Nafta é uma experiência única. Nunca antes se tentou aplicar regras tão complexas a países de níveis tão diferentes de desenvolvimento. Agora já se passaram dez anos e os três países do Nafta têm problemas sérios, sobretudo o México. Os pequenos agricultores mexicanos foram devastados. O governo mexicano calcula que entre 1,5 milhão e 5 milhões de famílias camponesas perderam suas terras porque o Nafta permite que os EUA subsidiem o milho que é vendido no México. Há milhões de pessoas que não têm mais terra, que não conseguem se sustentar e vão para as grandes cidades engrossar o desemprego. O que está acontecendo também como resultado da procura de emprego por esses agricultores é que os salários na indústria estão caindo. Há pessoas desesperadas que trabalham por qualquer coisa.

DINHEIRO ? Um dos argumentos em favor da Alca é que as exportações mexicanas aumentaram muito depois de o México ter aderido ao Nafta…
LORI ? As pessoas que apóiam a Alca sempre dizem isso, mas é bom olhar os números com cuidado. Nos primeiros cinco anos de Nafta muitas indústrias de manufatura deixaram os EUA e foram para a fronteira do México. São as chamadas ?maquiladoras?. Cerca de 800 mil postos de trabalho foram criados ali e as exportações cresceram muito, de fato. Mas as peças que ali eram montadas vinham dos EUA e os produtos depois de prontos são exportados de volta para os EUA com um selo do México. A verdade é que a economia industrial mexicana não se desenvolveu. Não há tecnologia. Isso é chamado de turismo industrial. Segundo o governo mexicano, 80% da indústria exportadora é turista. Para piorar, parte desses empregos que foram criados agora está desaparecendo. Cerca de 600 mil postos desapareceram porque essas indústrias estão indo para a China. O trabalhador mexicano que recebia US$ 5 por dia ficou caro perto de um chinês que custa US$ 1 por dia. E todas essas modernas fábricas de carros e televisões estão fechando as portas no México. O resultado é que há uma perda líquida de empregos industriais. Terceiro, as regras de investimento e serviço no Nafta abriram a possibilidade para que gigantes do varejo como Wal-Mart invadissem o México. E a conseqüência disso é que milhões de pequenos comerciantes fecharam suas portas. Houve um empobrecimento geral tanto das classes mais baixas como da classe média. Agora, na rodada de Cancún da OMC, deveremos ver uma série de protestos. Para o México o Nafta tem sido um desastre.

DINHEIRO ? O governo Bush vem adotando medidas protecionistas na área agrícola. Como elas afetam as negociações da Alca?
LORI ? Se eu fosse o Brasil veria isso como evidência da falta de sinceridade dos EUA. Não há interesse no livre comércio mas na busca de vantagens para os EUA. Não é um acordo de princípios. É um acordo mercantilista. Se eu fosse outro país que estivesse negociando a Alca tomaria isso como um aviso.

DINHEIRO ? A sra. acha que o Brasil deveria desistir das negociações?
LORI ? Acho que nesse momento as negociações estão abertas para mudanças de direção. Os EUA não podem dar o que o Brasil quer na agricultura e no antidumping porque é politicamente impossível. Em 2004 o presidente Bush se candidata às eleições, e para vencê-las, tem de ganhar alguns Estados que têm interesses contrários ao Brasil. A Flórida, que tem 26 delegados, é o primeiro produtor de cítricos. Missouri e Arkansas juntos têm 25 delegados e produzem soja. Pensilvânia, West Virginia, Ohio e Indiana são todos produtores de aço e têm 45 delegados no colégio eleitoral. Seus congressistas são totalmente contra mudanças na lei antidumping. Se você olhar os interesses dos Estados do Oeste, são todos Estados produtores de carne. O que o Brasil quer em soja, carne, aço e laranja necessita de mudança na lei antidumping, mas se Bush fizer isso não será reeleito. Tenho certeza que ele está mais preocupado em se reeleger do que em terminar a Alca.

DINHEIRO ? O presidente Bush diz que agricultura deveria ser discutida na OMC…
LORI ? E o Brasil concordou, acrescentando que questões como investimentos, serviços e compras governamentais também devem ser discutidas na OMC. É uma estratégia inteligente no curto prazo porque coloca o Brasil em pé de igualdade. Mas isso tudo é muito perigoso. Robert Zoellick (o representante comercial americano) já começou consultas em Washington com as empresas e o governo. Ele está perguntando às empresas se elas aprovam uma Alca em duas fases. Os EUA concordam com a idéia de tirar alguns assuntos da pauta ? a tal da Alca Light ? apenas se o Brasil concordar em estabelecer datas para o começo de negociações que o Brasil não quer fazer agora. O acordo final de 2005 não trataria de investimentos, mas em 2006 as discussões sobre investimentos voltariam automaticamente, para entrar em vigor em 2008. É a mesma estratégia dos EUA na OMC. Eles dão o máximo que podem para fechar os acordos e garantem cláusulas que permitem negociar o resto que lhes interessa. Em resumo: o problema da Alca é que os EUA propõem um modelo errado.

DINHEIRO ? Mas isso é tão grave?
LORI ? É, porque no atual modelo a Alca vai devastar seu País, mesmo se for feita em cinco anos ou dez anos. A Alca é como se fosse um câncer. Se você faz radioterapia ele regride, mas não vai embora. O que se faz? Você deixa ele lá correndo o risco de que ele aumente novamente e o leve à morte? Não. Você extrai e tenta se livrar do câncer. Neste momento os EUA não podem politicamente se mover e países como o Brasil estão em posição de sugerir opções. Se os EUA pudessem ceder nisso e naquilo poderia haver negociação. Mas eles não podem.

DINHEIRO ? E qual seria o modelo certo?
LORI ? Acho que o Brasil poderia fazer o que alguns países
asiáticos fizeram: em 1995 os EUA pressionaram para negociar
uma área de livre comércio no Pacífico e eles negociaram por
vários anos. Quando uma prévia do texto saiu, como está acontecendo com a Alca, países em desenvolvimento como Indonésia e Malásia analisaram o texto e disseram que aquele não era um modelo correto para eles, que arruinaria seus interesses nacionais. Esses países decidiram que era melhor fortalecer suas economias antes de negociar com os EUA, Canadá e Austrália e criaram um acordo chamado Asean. É como um Mercosul. Eles se encontram em cúpulas todos os anos para discutir interesses regionais e quando há concordância fazem um acordo específico. Acho que esse é um modelo alternativo e realista para a Alca.

DINHEIRO ? O que você acha da Alca Light, da Alca com
escopo reduzido?
LORI ? Não é uma boa idéia. O Brasil está jogando questões
como propriedade intelectual e investimentos na OMC, mas não
existe um acordo detalhado sobre essas questões. Na verdade, há uma batalha dos EUA para colocar esses assuntos dentro da OMC. Países como China, Índia, Malásia, Venezuela e até o México já disseram que não querem negociar na OMC investimentos e compras governamentais. Então, EUA, Japão e União Européia estão pressionando os outros países usando o Brasil como exemplo. Não importa se for na Alca ou na OMC: acordos sobre investimentos limitam a política industrial dos países.

DINHEIRO ? A Alca é inevitável?
LORI ? Temo que alguns países acreditem que a Alca seja inevitável, mas não é. Só no Congresso americano há muitos opositores, por causa do histórico do Nafta. Mas na perspectiva do governo e das companhias americanas, o que realmente interessa é o Brasil. O país de vocês estabeleceu um exemplo ideológico diferente no hemisfério e isso é um problema. É um país que tem política industrial, tem um sistema financeiro nacional e uma grande companhia de petróleo. Tem também uma política de reforma agrária. Isso preocupa porque mostra que há um modelo alternativo bem aqui no Continente.

DINHEIRO ? Se o Brasil é tão importante para os EUA não haveria espaço para concessões americanas?
LORI ? O problema é que há muitas coisas que as companhias americanas querem controlar no Brasil. Há interesses nas áreas financeira, madeireira, petrolífera e mineral. Não é um interesse público, é meramente interesse privado. Mas se você deixar, esses interesses econômicos tomariam conta do Brasil.