DINHEIRO – O modelo econômico que tirou a Argentina do buraco foi abandonado. E hoje o país está novamente em crise. O que aconteceu?
ROBERTO LAVAGNA –
Para tirar a Argentina da pior recessão em 108 anos, implementamos em 2002 um inédito ajuste nas contas públicas. Pela primeira vez na história do país, houve superávit fiscal. Depois, criamos um ambiente de estímulo aos investimentos. O Estado deve competir com o setor privado, sem impedir de forma desleal que as empresas façam seus investimentos. Além disso, fortalecemos o consumo interno. Tudo ia bem, mas o governo Kirchner decidiu mudar o que estava dando certo. Não digo que a Argentina está falida, mas está muito diferente daquela que vimos anos atrás. Mudou para pior.

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DINHEIRO – Mudou de que forma?
LAVAGNA –
A economia já crescia a um ritmo chinês. O PIB chegou a se expandir 10% ao ano. O desemprego estava baixo, em torno de 8%. Os salários em alta. O consumo estava muito forte. O cenário ideal para garantir um prolongado ciclo de crescimento. Daí o governo mudou as diretrizes, negligenciou o superávit fiscal e quis acelerar ainda mais o crescimento com forte aumento dos gastos públicos. Essa tentativa de superaquecer a economia gerou inflação, a pior doença que pode existir em qualquer economia. O desemprego hoje está em 12%. E a Argentina se tornou um lugar que não atrai mais investimentos.

DINHEIRO – Somente a inflação arruinou a Argentina?
LAVAGNA –
Em grande parte, sim. A inflação criou distorções na economia, destruiu a capacidade de compra dos trabalhadores, desestimulou novos investimentos. Foi o começo do fim. Tudo aquilo que tínhamos conquistado, foi destruído por erros do governo. Outros problemas surgiram como efeito colateral, mas a origem foi a inflação.

DINHEIRO – Então, a Argentina deu um passo maior que a perna?
LAVAGNA –
A senhora que está hoje no poder (Cristina Kirchner) não só abandonou o modelo econômico que provou estar no sentido correto, como implementou um sistema que tem prejudicado todos os setores da economia. Se tivesse mudado, tudo bem, desde que mantivesse o crescimento. Não confirmou o êxito e ainda fez a país andar para trás.

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DINHEIRO – Historicamente, a Argentina tem dificuldades para administrar em tempos de bonança, não?
LAVAGNA –
Infelizmente, sempre que tudo vai bem, mudanças políticas atrapalham. Já fomos a maior economia da América Latina décadas atrás, com os melhores indicadores econômicos e sociais. No entanto, de tempos em tempos, o governo comete os mesmos erros. Aconteceu de novo. Mais uma vez, a Argentina é uma vítima do populismo. Os governos querem controlar demais o país e exageram na dose.

DINHEIRO – O sr. perdeu as eleições em 2007 para Cristina Kirchner, mesmo sendo considerado por muitos um herói que tirou o país da crise. Por quê?
LAVAGNA –
O marido dela, Néstor Kirchner, também tinha uma imagem positiva na Argentina. Essa reputação influenciou positivamente na vitória da atual presidente. Mas, mesmo assim, o atual governo é bem diferente do anterior. Coisas que fazem parte da política.

DINHEIRO – A popularidade da presidente Cristina Kirchner está no nível mais baixo desde que assumiu o governo: abaixo de 25%. Ao mesmo tempo, seu nome desponta como um dos mais fortes à Presidência. É um cenário convidativo para concorrer à Presidência?
LAVAGNA –
As eleições na Argentina serão apenas em outubro de 2011. Ainda falta muito tempo. Até lá, muita coisa pode mudar. Mas estou sempre disposto a ajudar da forma que for conveniente.

DINHEIRO – Ainda dá tempo de os Kirchner resgatarem a popularidade?
LAVAGNA –
Difícil responder. Acho que o governo perdeu a oportunidade de reafirmar o crescimento que existia quando assumiu. Deixou de se preocupar com a inflação, enquanto outros países, como o Brasil, lutavam para controlar a inflação. Hoje, a Argentina paga pelo equívoco, enquanto o Brasil colhe os méritos da estabilidade.

DINHEIRO – As exportações da Argentina respondem por apenas 15% da produção do país, fatia semelhante à do Brasil. A crise internacional não pode ser culpada pela recessão na Argentina, concorda?
LAVAGNA –
A questão central na Argentina é que já havia um problema interno quando a crise internacional chegou. O Brasil passou bem pela fase mais difícil porque o consumo interno estava muito bem. Não foi o nosso caso. A combinação entre crise doméstica e crise global levou o país ao buraco de novo. Neste ano, a economia vai encolher entre 2,5% e 3,5%. No ano que vem, não passa de zero. É inaceitável um crescimento abaixo de 3%, percentual que será facilmente batido pelo Brasil.

DINHEIRO – Muitos falam em 5% de crescimento para o Brasil. Outros apostam em 6%.
LAVAGNA –
Acho que é otimismo demais. A crise ainda não acabou. Sem querer desmerecer as projeções dos economistas brasileiros e do próprio governo, essa previsão é exageradamente alta, na minha opinião.

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DINHEIRO – Além das questões econômicas, a Argentina tem enfrentado problemas políticos e sociais. Até o futebol, uma instituição nacional, vai mal.
LAVAGNA –
Realmente, a Argentina se tornou um arauto de más notícias. Os conflitos políticos sempre existiram, em maior ou menor intensidade. Os movimentos sociais, muitos deles liderados por produtores rurais, refletem a insatisfação do povo com o andamento da economia e com a falta de democracia real. Uma coisa leva a outra. No caso do futebol, não sei explicar.

DINHEIRO – O que o sr. quer dizer com democracia real?
LAVAGNA –
Existem duas variações em um regime democrático. A democracia real é aquela em que realmente se pratica a democracia. A outra, a democracia formal, é vista somente no discurso. O governo argentino não abre espaço para o diálogo. Não há negociação. Isso não é democracia. O presidente Lula está sempre dialogando com vários setores produtivos para buscar soluções para problemas específicos. Na Argentina, falta diálogo.

DINHEIRO – A estratégia do Brasil no enfrentamento da crise, de fortalecer o mercado doméstico, serve para a Argentina?
LAVAGNA –
Sim. É preciso dar importância ao consumo interno, sem abandonar o foco nas exportações. Assim, quando um lado vai mal, o outro equilibra. No caso da Argentina, o ambiente doméstico é diferente em comparação ao Brasil. O crédito ainda é baixo, as famílias têm pouco dinheiro para gastar porque a inflação estrangula o orçamento e a falta de perspectiva com esse governo desencoraja os gastos.

DINHEIRO – Por que os setores mais fortes da Argentina, como a pecuária, foram tão afetados? Hoje o país produz menos carne que o Paraguai.
LAVAGNA –
O consumo interno está baixo e a crise esfriou o consumo mundial. Assim, todos os setores exportadores, como o de carne, pisaram no freio. Mas isso é temporário. A Argentina tem uma enorme capacidade de reação. Provamos isso no passado. A quantidade de terra cultivável per capita é oito vezes maior que a média mundial.

DINHEIRO – Como o sr. avalia a decisão do G-20 de transferir parte do poder aos países emergentes?
LAVAGNA –
Politicamente importante, mas pouco para dar aos países emergentes mais destaque no cenário global. Brasil, Índia e China ganharão mais com essa decisão porque têm uma boa imagem no Exterior. Para os outros, a mudança é pequena.

DINHEIRO – Não é importante para o continente?
LAVAGNA –
Não para todos. Se olharmos para trás, veremos que Brasil, Uruguai e Chile fizeram bem aquilo que deveria ser feito. No nosso caso, começamos a fazer, mas nos perdemos no meio do caminho.

DINHEIRO – A paridade cambial na Argentina durante 11 anos levou o país à crise. As razões agora são outras. Os problemas, no entanto, semelhantes.
LAVAGNA –
Discordo. Foi graças a essa paridade do peso com o dólar que o sistema financeiro ganhou força. As empresas puderam modernizar o parque industrial e a inflação ficou sob controle.

DINHEIRO – Sob esse ponto de vista, a reclamação dos empresários brasileiros de que o real está muito depreciado diante do dólar não faz sentido.
LAVAGNA –
Não se pode criticar o câmbio por todos os problemas da economia. Não é isso. Acho, no entanto, que a reclamação dos empresários brasileiros é mais em relação à forte flutuação do real.

DINHEIRO – O governo argentino mudou as regras de importação de produtos brasileiros. Passou a avaliar caso a caso, sem critérios claros. Isso não fere a proposta de livre comércio do Mercosul, que o sr., inclusive, ajudou a criar?
LAVAGNA –
Dentro das regras do Mercosul, existem mecanismos de adaptação competitiva. Ou seja, quando um dos lados está em desvantagem, é preciso equilibrar. Nesse ponto, tanto o Brasil quanto a Argentina erraram. Do lado brasileiro, não houve interesse em equilibrar a balança comercial quando o Argentina estava em grande desvantagem. No lado argentino, decidiram mudar as regras do jogo de repente, sem critérios claros. Isso assustou todo mundo.