27/01/2022 - 15:55
A Alemanha se vê diante de um dilema na atual crise da Ucrânia, pois compra metade de seu gás natural da Rússia. E o caminho para essa dependência de Putin foi definido há muito tempo.”A crise na Ucrânia levou a uma acentuada deterioração nas relações entre a Rússia e o Ocidente”. Com esta frase, Matthias Basedau e Kim Schultze iniciam seu estudo intitulado: “Dependência das importações de energia: Risco para Alemanha e Europa?”. O estudo diz: “A Alemanha e a Europa dependem em grande parte da importação de energia da Rússia. Isso se aplica sobretudo ao gás natural, ao petróleo e ao carvão mineral. Tendo em vista a deterioração das relações com a Rússia, crescem os alertas de que o governo russo poderia usar possíveis interrupções no fornecimento como uma arma política de grande escala.”
Vale notar que o artigo foi escrito em 2014, a partir de uma pesquisa do Instituto Alemão de Estudos Globais e de Área (Giga) e do Instituto Leibniz de Estudos Globais e Regionais, em Hamburgo.
Dependência consciente
Nada mudou na análise geopolítica desde a publicação do estudo, pelo contrário: desde então, o presidente russo, Vladimir Putin, acelerou as mudanças em sua política externa e energética. O chefe de Estado russo modernizou as Forças Armadas de seu país e está colocando pressão sobre países vizinhos e em partes da União Europeia (UE) com gestos militares ameaçadores.
A questão é que a dependência alemã de importações de energia da Rússia aumentou significativamente nos últimos dez anos, mais uma vez. Desde 2012, a parcela do gás natural russo no consumo da Alemanha aumentou de 40% para 55%. Também no fornecimento de petróleo, a participação da Rússia aumentou dez pontos percentuais no mesmo período: de 38% para 42%.
Sem risco de casas frias
Metade das residências na Alemanha é aquecida com gás, e o período no qual o aquecimento é necessário pode durar até março, dependendo do clima. No entanto, os especialistas estão convencidos de que as pessoas não precisam se preocupar com a possibilidade de suas casas ficarem frias se o conflito na Ucrânia se intensificar.
“Se dependesse apenas do fornecimento global, poderíamos substituir o gás natural russo amanhã. A pergunta é: quanto queremos pagar por isso?”, disse Andreas Goldthau, especialista em energia do Conselho Alemão de Relações Exteriores (DGAP), ao jornal Frankfurter Allgemeine Sonntagszeitung (FAS).
Em caso de uma paralisação do fornecimento, a Europa teria três opções: comprar mais gás natural de outros países fornecedores via gasodutos, importar mais gás natural liquefeito (GNL) por navios-tanque ou utilizar as instalações de armazenamento de gás.
A indústria, o maior consumidor de gás natural na Alemanha, com cerca de 35% do consumo total, já está enfrentando dificuldades com os altos preços do gás. Para setores que fazem muito uso de energia, como as indústrias de alumínio, fertilizantes ou cerâmica, a produção não é mais rentável depois que o preço do gás natural atinge certo nível.
Estoques com níveis baixos
Usar as instalações de armazenamento de gás não seria tão simples, porque os níveis de abastecimento dessas instalações, localizadas principalmente no norte da Alemanha, estão em uma baixa recorde.
Sebastian Bleschke, da Iniciativa Armazenamento de Energia e.V. (INES), a associação industrial de operadores de instalações alemãs de armazenamento de gás e hidrogênio, confirmou isso à DW.
“A Alemanha tem a quarta maior capacidade de armazenamento de gás natural do mundo, o que certamente é uma das razões pelas quais muitos, especialmente no mercado interno da UE, estão agora olhando para as instalações de armazenamento alemãs. Atualmente, o nível delas está um pouco abaixo de 42% da capacidade. Os níveis de abastecimento nunca foram tão baixos como agora”, diz.
Um detalhe: 10% das instalações alemãs de armazenamento de gás são operadas por subsidiárias do grupo Gazprom, vinculado ao Kremlin. Bleschke afirma que o nível de abastecimento dessas instalações é de 17%, em contraste com 50% nas demais.
Noruega e Holanda produzem em plena capacidade
Países produtores europeus, como Noruega, Holanda ou Reino Unido, não podem substituir o gás da Rússia. O governo da Noruega afirma que já está produzindo o que pode, e a Holanda também não consegue aumentar seu fornecimento. O Reino Unido, por sua vez, já está sofrendo com a escassez de gás natural e preços recordes que levaram à falência diversos pequenos fornecedores de gás.
GNL (ainda) não é um concorrente para os gasodutos
Nas últimas semanas, mais e mais navios-tanque com gás natural liquefeito partiram dos EUA para a Europa. Ao contrário de países vizinhos como a Holanda, no entanto, a Alemanha não possui um único terminal de GNL em seu litoral. Em vez disso, possui o gasoduto Nord Stream 2, que já está cheio de gás russo e aguarda sua licença de operação.
Com o Nord Stream 2, a situação na Alemanha de pisar em ovos sobre a dependência energética da Rússia torna-se particularmente clara. Em um momento ele é colocado na mesa pela ministra do Exterior Annalena Baerbock como uma possível ameaça de sanções contra a Rússia, e em outro é relativizado pelo chanceler federal Olaf Scholz como um projeto puramente privado. Porém, o chanceler recentemente mudou de ideia e trouxe à tona a possibilidade de fechar o gasoduto no caso de uma invasão da Ucrânia pela Rússia.
No entanto, representantes da indústria não acreditam que a Rússia deixará de fornecer gás para o Ocidente completamente. Klaus-Dieter Maubach, presidente da geradora de eletricidade Uniper, afirma que mesmo durante a Guerra Fria e após a anexação da Crimeia, em 2014, a Rússia manteve seus compromissos de fornecimento a longo prazo. Ele estima a participação do gás natural russo na demanda alemã em 50%, mas esse percentual flutua, em especial recentemente.
De acordo com a empresa de dados ICIS, a Rússia forneceu apenas 32% do gás natural consumido na Alemanha em dezembro passado. A Noruega contribuiu com 20%, a Holanda com 12%. Apenas 5% da demanda de gás natural da Alemanha foi coberta pela produção interna. Cerca de 22% vieram de instalações de armazenamento, e o resto, de outras fontes.
Mesmo que a importação de gás russo fique significativamente abaixo de 50%, Maubach afirma: “A Rússia não pode ser substituída como fornecedor nos próximos anos”. Além disso, a transição energética prevê o desligamento das três usinas nucleares alemãs ainda ativas e a eliminação progressiva da geração de energia a carvão. Para suprir as lacunas criadas por isso, o gás natural continua sendo a fonte central de energia fóssil para a Alemanha.
Mais compras de gás no mercado à vista
Há décadas, fornecedores e importadores europeus têm contratos de fornecimento de gás russo com prazos de até 30 anos. Uma das razões para o aumento extremo no preço do gás natural é que muitos fornecedores compraram gás a curto prazo no chamado mercado spot. Os preços dispararam no ano passado, e agora os fornecedores foram pegos no contrapé.
De qualquer forma, os especialistas em energia concordam que, até que se pudesse compensar totalmente possíveis quedas de abastecimento pela Rússia com entregas de GNL por navios-tanque, mais caras, a temporada de uso do gás para aquecer os edifícios provavelmente já teria terminado.
No entanto, o tempo está a favor da Alemanha e da UE, que ao todo recebe cerca de 40% de suas necessidades de gás da Rússia, afirma Sebastian Blaschke. “À medida que o inverno avança, é provável que vejamos um abrandamento das temperaturas, afinal de contas o clima está atualmente bastante ameno. Mas uma certa incerteza permanece.”
O gás natural permanecerá caro, pelo menos até a primavera no Hemisfério Norte. E provavelmente não haverá alívio real até que uma solução pacífica esteja à vista no jogo de pôquer geopolítico entre Vladimir Putin e o Ocidente.