“E conhecerei a verdade, e a verdade vos libertará.” A passagem bíblica descrita em João 8:32, apropriada pelo presidente Jair Bolsonaro como slogan de seu mandato, se mostrou nos últimos dias como um prenúncio do que viria após a apuração definitiva dos votos, no domingo (30). As urnas mostraram a vontade da maioria, com vitória apertada do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e libertaram mais de 60 milhões de eleitores que desaprovam a atual gestão. Mas, nos últimos dias, essa mesma verdade tem aprisionado brasileiros em várias partes do País, em manifestações ilegais e antidemocráticas em rodovias e avenidas importantes das principais metrópoles. Pelos cálculos da Polícia Rodoviária Federal (PRF), às 13h da quinta-feira (3), até o fechamento desta edição, haviam 86 bloqueios em rodovias federais de 11 estados, quase a metade do dia anterior, quando foram registradas 167 interdições parciais ou bloqueios totais em 15 estados.

O que no passado se revelou como capacidade de mobilização e força pelos caminhoneiros, hoje expõe uma ofensiva fragmentada e golpista de uma minoria do setor de transporte. Ao não aceitar os resultados das urnas e reivindicar intervenção militar para anular a derrota de Bolsonaro, os apoiadores do presidente gritam por liberdade de expressão e defesa da democracia cerceando direitos e colocando em xeque a próxima legitimidade do voto popular.

A balbúrdia bolsonarista, alimentada por um posicionamento dúbio de Bolsonaro e por um suposto endosso da cúpula da PRF, pode se enquadrar no tipo penal previsto no artigo 359-L do Código Penal, de acordo com a advogada Marina Pinhão Coelho Araújo, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim). “A lei diz que tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais, é delito que pode levar a prisão de até oito anos”, disse, ao Consultor Jurídico.

Fora do campo penal, a contestação dos resultados das urnas causou estragos à economia. Um levantamento da Bloomberg Economics, assinado pelas economistas Adriana Dupita e Ana Galvão, projetam perdas de até US$ 12 bilhões para a setor produtivo brasileiro em decorrência das turbulências pós-eleitorais. Ao transformar vias brasileiras numa espécie de Venezuela verde-amarela, militantes bolsonaristas geraram desabastecimento de supermercados e postos de combustíveis, além de escassez de insumos para a indústria. Quase 70% dos supermercados dos estados de São Paulo, do Mato Grosso, do Mato Grosso do Sul, de Minas Gerais, do Rio de Janeiro e de Santa Catarina estavam, na quarta-feira (2), com problemas de abastecimento em razão dos bloqueios, segundo levantamento da Associação Brasileira de Supermercados (Abras). Para o vice-presidente da entidade, Marcio Milan, os supermercados de menor porte foram os mais afetados. “As lojas menores estão apresentando mais problemas porque elas têm capacidade menor de estocagem e também tem, basicamente, abastecimento diário desses produtos.”

Outras importantes associações, como a Abag (do agronegócio), Abralog (do setor de logística) e CNT (que representante a atividade de transporte), também se posicionaram contrárias à baderna dos derrotados nos últimos dias. “É ilegal, é inconstitucional, é imoral”, disse o CEO da operadora Logs, Marcelo Gomes. O executivo afirmou que o setor de transporte passa por momento de grande dificuldade, por conta de ainda estar se recuperando dos efeitos da pandemia, da guerra e do período de forte oscilação nos combustíveis.

MÉTODO Os movimentos antidemocráticos não chamaram a atenção apenas pela insanidade de pauta de reivindicação, mas também pelos métodos — criticados até pelo presidente Bolsonaro, que disse ser contra o uso de “práticas da esquerda” para expor a inconformidade com o resultado das urnas. Em várias partes, crianças foram utilizadas como escudo-humanos para impedir uma reação mais enérgica das polícias.

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“Eu quero fazer um apelo. Desobstrua as rodovias. Isso daí não faz parte de manifestações legítimas. Não vamos perder a legitimidade” Jair Bolsonaro, em vídeo divulgado na quarta-feira (2).

O presidente da Associação Brasileira dos Condutores de Veículos Automotores (Abrava), Wallace Landim, conhecido como Chorão, atribuiu as táticas e os bloqueios à direita radical, e negou qualquer relação com a demanda atual. “Não se pode parar o País por não aceitar a vitória de Lula. Isso vai prejudicar muito a economia”, afirmou. “Precisamos reconhecer e respeitar a democracia desse País, da vitória do presidente. Se fosse o contrário, a esquerda também precisaria entender e aceitar”, disse Chorão. Resta aos perdedores, por enquanto, aceitar e esperar pela próxima eleição. O choro é livre, mas contestar as urnas, não.