14/06/2000 - 7:00
Pela primeira vez, desde que assumiu o segundo mandato, o presidente do Fernando Henrique Cardoso empunhou uma bandeira capaz de resgatar parte da dívida social brasileira. Em Paris, depois de passar por Hannover e Berlim, ele elogiou a decisão francesa de reduzir a jornada semanal de trabalho para 35 horas e a estabelecer mecanismos legais para facilitar o ingresso do jovem no mercado de trabalho, a partir de uma política governamental voltada para o primeiro emprego. Num movimento tão discreto quanto estratégico, durante conversa com o primeiro-ministro Lionel Jospin, Fernando Henrique provou estar realmente interessado no plano francês. O presidente comentou com seu interlocutor que havia sido surpreendido pelas repercussões no Brasil de suas declarações favoráveis à redução da jornada de trabalho. Jospin quis saber se o Brasil estava mesmo interessado na experiência francesa. FHC disse que sim. Foi, então, informado de que o governo francês transformou a nova jornada em lei ao certificar-se que a economia apresentava sinais de crescimento. ?Quando adotamos a medida foi porque a economia voltou a crescer de maneira sustentada?, disse Jospin. O presidente convenceu-se de que era preciso conhecer melhor o sistema francês. Acertou que enviará a França nos próximos dias um observador brasileiro para estudar as mudanças do governo socialista. O mais cotado é o sociólogo Vilmar Farias, chefe da assessoria especial do Planalto.
Enquanto o presidente avançava suas tropas na França, no Brasil as declarações, mesmo cercadas de ponderações, provocaram reações disparatadas. O presidente da Fiesp, Horacio Lafer Piva, preferiu fanfarrear contra a proposta em lugar de levá-la a sério. ?Acho que essa discussão, neste momento, é no mínimo inoportuna?, reagiu. ?A indústria tem pelo menos dez coisas mais importantes para discutir agora, como a criação de uma nova política industrial.? O sindicalista Luiz Marinho, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, acampou por 36 horas ? período que considera ideal para a jornada semanal de trabalho no Brasil ?, diante da Fiesp mas verbalmente ironizou FHC. ?O presidente deveria mudar a sede do governo para Paris?, disse. ?Lá ele sempre assume uma postura mais social.? Enquanto os medalhões faziam das palavras do presidente um cavalo de batalha, na economia real a redução de jornada ganhava adeptos. A multinacional alemã Rolamentos Fag, com 850 empregados em São Paulo e faturamento de US$ 100 milhões anuais, aprovava na prática sua experiência dos três últimos anos, quandou reduziu a jornada de 44 horas para 41 horas. ?Neste período, contratamos mais 5% de mão de obra, aumentamos a produtividade, nossa margem de lucro cresceu e ganhamos muito em motivação do nosso pessoal?, elencou a DINHEIRO José Roberto de Melo, recursos humanos da empresa. Na quarta-feira 7, a Rolamentos Fag reduziu em mais uma hora semanal a sua jornada. ?Fernando Henrique animou uma discussão que parecia esquecida, mas que existe no dia-a-dia das fábricas?, afirmou o presidente da Força Sidindical, Paulo Pereira da Silva. Há mais que extremismo sindical nessa postura.
Hora extra. O professor Marcio Pochmann, da Unicamp, tem projeções que indicam que com uma jornada de 35 horas semanais, seria possível criar 1,5 milhão de empregos crescendo apenas 4,3% do PIB. Na jornada atual, o mesmo número de vagas seria aberto com crescimento de 5,5%. ?A mesma projeção mostra que se tivéssemos uma jornada de 28 horas não haveria desemprego no País?, diz ele. Os brasileiros trabalham anualmente 400 horas mais que os europeus e 250 horas mais que os americanos ? sobretudo por causas das horas extras. Cerca de 27 milhões do 44 milhões de trabalhadores brasileiros fazem horas extras, apesar do desemprego. Na verdade, ao completar suas palavras na França, Fernando Henrique incentivou empresários e trabalhadores a travarem um bom debate. Ele fez duas ponderações: a primeira é a de que o governo não será autor de um projeto de lei para reduzir a jornada em todo País; a segunda é a de que as 35 horas devem ser discutidas entre trabalhadores e empresários, setor a setor, tendo como base critérios de produtividade. O presidente lembrou, ainda, que em um país heterogêneo como o Brasil, que apresenta setores produtivos e outros ainda com a produtividade no chão, o governo não pode adotar verticalmente a diminuição das horas semanais trabalhadas.
A jornada semanal de trabalho sempre foi uma questão pouco consensual entre os brasileiros. No início do século, a jornada era de absurdas 60 horas semanais. A partir da reforma trabalhista do ex-presidente Getúlio Vargas, caiu para 48 horas semanais e somente com a Constituinte de 1988 foi permitido aos trabalhadores uma carga menor de 44 horas semanais. A lei francesa, conhecida como Lei Aubry, em homenagem à ministra do Emprego e Solidariedade, Martine Aubry, somente foi aprovada pela Assembléia Nacional porque o gabinete de Jospin participou diretamente das negociações. De 13 de junho de 1998 até o final de 1999 foram assinados 11.152 acordos para redução de jornada de 40 para 35 horas semanais. Somente nos primeiros seis meses do programa mais de oito mil empregos foram criados. Espera-se que até o ano 2002 um saldo de 102 mil empregos, entre salvos e criados. Até agora o governo francês já registrou uma queda do desemprego da ordem de 10%.