26/07/2025 - 5:29
Disparos de fortaleza no litoral paranaense contra embarcação inglesa há 175 anos já foram celebrados como orgulho. Revisto, episódio mostra como manutenção da escravidão no Brasil se confundia com “defesa da soberania”Os turistas que visitam a Fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres, na Ilha do Mel, no litoral do Paraná, logo se deparam com uma placa instalada na entrada do antigo complexo militar.
Nela, consta uma mensagem em tom celebratório: “A 1° de julho de 1850, nesta fortaleza da Barra de Paranaguá, bravos filhos da cidade auxiliados por aderentes dedicados salvaguardaram a honra do Brasil resistindo à passagem do crusador Cormorant com as três presas feitas no porto”.
A placa foi instalada em 1950, no centenário do episódio que ficou conhecido como Incidente de Paranaguá ou Batalha do Cormorant.
Nessa batalha breve, que ocorreu há 175 anos, canhões da fortaleza dispararam contra o navio HSM Cormorant, uma embarcação de guerra da Marinha Real Britânica, que foi danificada e acabou zarpando às pressas.
Pouco antes do ataque, o navio inglês tinha aprisionado três ambarcações brasileiras: dois bergantins, o Donna Ana e o Sereia, além da galera Campeadora. Além disso, uma quarta embarcação, o brigue Astro foi afundado pelo seu próprio capitão – para que não caísse em mãos britânicas.
Como atesta a placa instalada em 1950, os disparos da fortaleza contra os ingleses foram pintados por décadas como um episódio digno de orgulho, um ato de defesa da soberania brasileira.
No entanto, o que a placa não conta é que a “defesa da soberania” neste caso se misturava com a persistência em manter viva a prática da escravidão no Brasil, e em especial o tráfico ilegal de escravizados da África.
A presença do Cormorant na região não ocorreu por acaso: à época, os ingleses lideravam uma campanha naval em escala mundial para reprimir o tráfico, que incluía a captura de embarcações suspeitas de estarem envolvidas na prática. E Paranaguá, porto próximo da ilha do Mel, havia se transformado num dos principais centros do tráfico ilegal no litoral brasileiro, com a cumplicidade de autoridades locais.
E as embarcações capturadas pelo Cormorant na baía de Paranaguá naquele julho de 1850 eram suspeitas de tráfico ou estavam ligadas a membros da elite com laços com a escravidão.
Ainda assim, o episódio da Batalha do Cormorant acabaria sendo pintado posteriormente como uma reação popular, já que os disparos pela fortaleza só ocorreram após um grupo de jovens habitantes de Paranaguá acompanhados pelas tripulações dos navios capturados pressionarem duramente o comandante da instalação militar a abrir fogo contra os igleses.
No fim, o Cormorant não suportou os 30 minutos de fogo disparado pela fortaleza mas conseguiu zarpar, ainda que danificado. Um tripulante morreu e outro ficou ferido. Os navios Donna Ana e Sereia acabaram incendiados e o Campeadora foi utilizado por parte da tripulação do Cormorant para seguir viagem até Serra Leoa, na África.
“O episódio era relatado pela história oficial como sendo um ato heroico de populares de Paranaguá contra as ofensivas inglesas. As narrativas giravam em torno da defesa da região e mesmo do Brasil”, comenta a historiadora Bruna Gomes dos Reis, pesquisadora na Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Apesar da visão patriótica que persistiu por décadas, a batalha fez parte de um contexto muito peculiar da história escravocrata brasileira. “A historiografia de hoje vem deixando de ser uma historiografia de exaltação de heróis e caminha muito mais para uma visão complexa, uma teia de relações sociais, políticas e culturais”, salienta o historiador Victor Missiato, pesquisador no Instituto Presbiteriano Mackenzie. “Nesse sentido, o dilema que se coloca é a resistência ao fim da escravidão muito mais do que uma luta patriótica contra os ingleses.”
Queda de braço entre Reino Unido e Brasil
Último país da América a abolir a escravidão, o Brasil sofria na primeira metade do século 19 pressões comerciais e políticas do Reino Unido, que estava empenhando em uma campanha para reprimir o tráfico transatlântico de escravizados.
Em 1831, sob pressão inglesa, havia sido aprovada no Brasil a Lei Feijó, que tinha como um dos objetivos coibir o chamado tráfico negreiro – o comércio institucionalizado de mão de obra africana escravizada em portos pré-determinados da costa brasileira.
O tiro saiu pela culatra e a legislação ficou conhecida como “lei para inglês ver”. Ou seja, existia no papel, mas não era colocada em prática.
O tráfico continuou, mas em portos alternativos, justamente para driblar eventuais inspeções.
O historiador Ilton Cesar Martins, professor na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), diz que o Brasil “vinha cozinhando a Inglaterra em banho-maria quanto ao cumprimento de acordos sobre a efetiva cessação do infame comércio”. Como a vigilância nos grandes portos ficou mais cuidadosa, “o tráfico passou a recorrer a pequenos portos e navios de baixa tonelagem para desembarque de escravizados”, explica.
Nesse contexto, o Porto de Paranaguá se tornou um local estratégico. De acordo com levantamento do historiador Bruno Rodrigues de Lima, pesquisador do Instituto Max Planck, em Frankfurt, na Alemanha, pelo menos 750 mil africanos aportaram em solo nacional nessas condições ilegais. Segundo Martins, somente em Paranaguá oito navios negreiros desembarcaram entre 1837 e 1839 – trazendo um total de 4.253 novos escravizados.
“O Paraná, que também explorava a escravidão, servia como entreposto para que os negros ilegalmente trazidos fossem transportados depois para São Paulo, em sua maioria”, prossegue Martins. “Ou seja, o caso Cormorant revela uma das muitas estratégias que traficantes e escravistas adotavam para manter a instituição da escravidão funcionando.”
Tudo indica que o local já era um velho conhecido dos mercadores de mão de obra escravizada. Estudos dos anos 1970 da historiadora Cecília Maria Westphalen (1927-2004), da Universidade Federal do Paraná (UFPR), constatam que o porto já era utilizado para este fim desde o século 18.
A contraofensiva inglesa veio em 1845, quando um ato do Parlamento do Reino Unido, conhecido como Bill Aberdeen, passou a autorizar os britânicos a capturar qualquer navio suspeito de transportar escravizados no oceano Atlântico. Era o que justificava ações com a do HSM Cormorant.
O Cormorant chegou até a baía paranaense porque estava no rastro do Sereia que, semanas antes, havia desembarcado cerca de 800 africanos em Macaé, no litoral do Rio. O Sereia acabou sendo um dos navios capturados pelos ingleses no episódio da Batalha do Cormorant em julho de 1850.
O site relata que o Cormorant encontrou em Paranaguá “pelo menos cinco navios” ancorados, “preparados para a travessia transatlântica” e que a baía, “um excelente porto natural”, servia de local de embarque e desembarque de prisioneiros africanos pelo menos desde o fim da década de 1830, “com a conivência das autoridades locais”.
Impacto para o combate ao tráfico
O Incidente de Paranaguá, embora hoje largamente esquecido, acabou tendo influência na luta pelo fim da escravidão no Brasil. Meros dois meses depois do episódio, o Império do Brasil acabou promulgando a Lei Eusébio de Queirós para proibir e combater o tráfico negreiro. Desta vez não seria uma mera lei “para inglês ver” e o Brasil começou a coordenar com os ingleses o combate à prática.
De acordo com um dossiê preparado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2021, o Incidente de Paranaguá é um “evento considerado como um dos principais motivadores para o governo brasileiro, pressionado pela Inglaterra, a comprometer-se a combater o tráfico de escravizados em seu território atlântico”.
Revisão historiográfica
No material do Iphan, o episódio é classificado como “um dos mais marcantes da história da repressão ao tráfico de escravos no Brasil”. A historiografia contemporânea revisita o episódio retirando dele os contornos heroicos ou mesmo de suposta defesa à soberania nacional. Agora, a batalha é tratada como uma emblemática prova de como a aristocracia brasileira resistiu a acabar com o regime escravocrata.
“O incidente é pensado à luz da resistência brasileira em acabar com a escravidão, os conflitos internacionais que isso gerava e, posteriormente, o trato com a memória negra para além da narrativa brasileira ou inglesa, sendo pensada a partir seus símbolos de sua resistência”, sintetiza a historiadora Reis.
Martins cobra que o caso Cormorant seja contextualizo “na violência que foi o tráfico negreiro”. Nesse sentido, ele define o episódio não como “uma fortaleza que ataca um navio” porque este estaria “afrontando à soberania nacional”. Mas sim como “um modo de vida estruturado na escravidão”, resistindo “a qualquer intromissão nos negócios da casa”.
“O episódio é uma boa representação do quanto o Brasil e seus senhores escravistas fizeram para manter o status quo extremamente excludente em pé”, ressalta o historiador. “Aquela troca de trios entre a fortaleza e o Cormorant ecoa até hoje.”