Na virada do ano, quando todas as embaixadas enviam seus relatórios de atividades para
Brasília, chegou ao Itamaraty um memorando do embaixador João Gualberto Porto, nosso homem em Cingapura. Em ofício de 96 linhas, ele reclamava: ?As carnes ditas brasileiras, por aqui, são fatiadas com bem menos perícia do que no Brasil; além disso, carecem de farofa e aipim frito?. Isso mesmo. O embaixador, que recebe US$ 8 mil e comanda 12 funcionários pagos pelo Erário, nada falou de negócios. Nem de aumentar o fluxo de comércio entre os dois países, de apenas US$ 840 mil no ano passado, ou US$ 70 mil por mês: menos que o custo da embaixada. É por essas e outras que o Itamaraty tem chamado a atenção do Tribunal de Contas da União. Na semana passada, o ministro Marcos Vilaça cobrou, por escrito, o detalhamento dos gastos no exterior. Vilaça descobriu que, nos últimos dois anos, o Itamaraty desembolsou R$ 1,5 bilhão para manter seus 162 postos diplomáticos e 1,2 mil funcionários espalhados pelo mundo. O problema é que pouco se sabe sobre como ou onde esse dinheiro foi gasto. O Itamaraty, verdadeira caixa-preta, é o único ministério que não detalha as suas contas no Sistema Integrado de Administração Financeira, o Siafi. ?O Itamaraty precisa explicar seus custos no exterior?, defende Vilaça. ?Há incerteza e deseconomia?.

O ponto mais nebuloso dos gastos do Ministério das Relações Exteriores está em Nova York. É lá, no EFNY, o escritório financeiro na 5ª Avenida, que são centralizados 70% do orçamento no exterior. Os técnicos da ONG Contas Abertas, que vivem escarafunchando as contas do governo no Siafi, descobriram que a rota de gastos dos diplomatas sai do Itamaraty para o EFNY e de lá em diante tudo é um grande buraco negro. ?Pode até ser que esses gastos sejam justificáveis?, diz o deputado Augusto Carvalho, presidente da ONG. ?O problema é que eles não estão se justificando?. O Itamaraty alega que a intermediação do escritório se explica porque seria a forma mais fácil de fazer transferências em dólar para as unidades no exterior. A única descrição disponível é sobre os aluguéis de imóveis. No ano passado, foram gastos R$ 124,3 milhões ? mais da metade de tudo o que a União desembolsou em contratos de aluguel. Em 2000, o TCU fez sua última auditoria nas contas do Itamaraty. Foram investigadas, por amostragem, somente as embaixadas na Malásia, Índia, Cingapura e Tailândia. Os desperdícios foram surpreendentes. A investigação constatou que despesas com xampus, sabonetes, sabão em pó, amaciante de roupas e até torneio de golfe para os embaixadores eram pagos com dinheiro público. ?Eu não vejo nenhuma relação entre o fato de representar o Brasil e gastos em amaciante e golfe?, afirma o embaixador Estellita Lins, criador do manual de etiqueta e estilo utilizado pelos diplomatas brasileiros. ?No meu tempo não era assim?.

O TCU tem no momento três focos principais ? Buenos Aires, Roma e Berlim. São as maiores representações. O caso mais emblemático é o da embaixada em Berlim. O prédio custa três vezes mais que o imóvel anteriormente ocupado em Bonn. A explicação dada pela assessoria de imprensa do Itamaraty para o aluguel mensal de US$ 130 mil é a de que o governo precisa de um imóvel à altura das relações do Brasil com a Alemanha. ?Houve um deslocamento de importâncias?, afirma um diplomata que serviu
na Alemanha. ?Agora, o governo de São Paulo quer montar uma representação em Munique, porque a embaixada não tem mostrado competência para gerenciar negócios?. Há
outras diatribes. Na embaixada em Buenos
Aires, está lotado um diplomata que jamais deu expediente por lá. Outra irregularidade muito comum é instalar o marido numa embaixada ? Paris, por exemplo ? e empregar a mulher no consulado. No governo militar, era uma ilegalidade; hoje é considerado apenas falta de ética. Todas essas espertezas acabam diluídas naquela conta do R$ 1,5 bilhão.