A indústria de videogames, assim como a do cinema, não tem pudores em usar e abusar de seus personagens e franquias para fazer caixa. Um deles é o Mario, que você conhece, independentemente da sua idade. Além de suas aventuras normais, o clássico encanador da japonesa Nintendo atuou como médico no game Dr. Mario; foi piloto de automobilismo, em Mario Kart; lutador, em Smash Bros.; boleiro, em Mario Soccer, entre tantos outros títulos lançados a um ritmo frenético. Como se diz no mundo do futebol, o personagem brincou literalmente nas 11.

Mas há exceções: nesse universo dos games, há uma empresa que prefere usar essa estratégia com mais parcimônia, sem atirar-se com muita sede ao pote. É a californiana Blizzard, fundada em 1991 e controlada pela holding Activision-Blizzard, um dos maiores grupos do setor. Principal referência mundial em jogos para computadores, a Blizzard em geral produz apenas um jogo novo por ano para uma de suas três franquias: Warcraft e Diablo, ambas ambientadas na era medieval, e Starcraft, uma ficção científica futurista. Mesmo assim, a empresa não deixa a peteca cair, promovendo competições de jogadores profissionais e seguidas atualizações.

Até 2012, essa estratégia manteve a trajetória de crescimento em receita e lucro. Mas o sinal de alerta soou em 2013. Naquele ano, a receita caiu de US$ 1,6 bilhão para US$ 1,1 bilhão. O lucro despencou quase 50%, chegando a US$ 376 milhões. O game World of Warcraft, que pode ser jogado online e cobra mensalidade dos participantes, também vem perdendo fôlego. O game, que reunia mais de 12 milhões de assinantes em 2010, viu o número de usuários cair para 6,8 milhões em julho de 2014. A Blizzard, no entanto, não podia culpar o mercado global de games, que cresceu de US$ 66,3 bilhões para US$ 70,4 bilhões no mesmo período, alta de 9,4%, segundo a consultoria holandesa Newzoo, especializada no segmento.

Qual é, então, a solução para voltar aos bons tempos? A Blizzard resolveu que era hora de dar espaço para o Team 5, equipe de 15 pessoas dedicada a fazer protótipos e pensar no futuro. “Juntamos pessoas da velha guarda, capazes de assumir diversos papéis e que não fossem muito especializadas, como acontece nas equipes grandes por necessidade”, diz Rob Pardo, diretor de criação da empresa. A esse time foi dada a missão de entrar nos mercados de tablets e smartphones. “A Blizzard ficou por muito tempo fora do segmento móvel por decisão de política empresarial”, diz Brian Blau, diretor de pesquisa da consultoria Gartner.

“Mas isso poderia prejudicá-los, com esse mercado ficando cada vez mais atraente.” Tratava-se de uma missão difícil de ser cumprida. Apesar de ser o futuro dos games, a mobilidade, por conta de sua instabilidade e pela velocidade dos modismos, não permite que uma empresa se mantenha por muito tempo na liderança. Muitas chegaram ao topo, mas poucas permaneceram lá por muito tempo, como aconteceu com a King, com o seu Candy Crush Saga, e a Zynga, com o Farmville. “A mudança mais importante para essa indústria é que os jogos rodam como serviços”, afirmou Peter Warman, CEO da Newzoo.

“É necessário melhorar continuamente a ‘jogabilidade’ e buscar modelos de negócios para converter mais jogadores ao modelo pago.” A resposta do Team 5 para entrar no mundo dos games móveis foi o Hearthstone, um jogo de cartas digitais colecionáveis baseado no mundo de Warcraft, lançado no ano passado. A consultoria nova-iorquina Superdata estima o mercado mundial de cards impressos em US$ 2,8 bilhões. O digital, em US$ 1,3 bilhão. A inspiração para Hearthstone veio de Magic: The Gathering, principal referência de cartas físicas e arrasa-quarteirões da fabricante de brinquedos Hasbro.

Criado nos anos 1990, o Magic tem milhares de cartas e fatura estimados US$ 250 milhões por ano. Seu desafio, no entanto, é atrair novos jogadores. Quem quiser aprender o básico deve enfrentar um manual de regras de dezenas de páginas. Em razão de sua mecânica pensada para o papel, o Magic não consegue obter a mesma repercussão online. Hearthstone, por outro lado, já nasceu digital e simples – um tutorial simpático e divertido conduz os jogadores pelas regras. “Quando você tem um produto físico, depende da loja, o que gera custos que inviabilizam a disseminação do jogo”, afirma Rafael Nepô, dono de um canal no YouTube dedicado à Blizzard e jogador de Magic.

Com o Hearthstone, a Blizzard apostou pela primeira vez no modelo freemium, que permite jogar de forma gratuita, mas cobra para que os usuários obtenham de forma mais rápida cartas mais poderosas. Dessa forma, Hearthstone conseguiu atrair mais de 20 milhões de jogadores ativos até setembro do ano passado. “Vimos diversos jogadores que chegaram aos níveis mais elevados do jogo sem gastar um centavo sequer”, disse à DINHEIRO Jason Chayes, diretor de produção de Hearthstone. Quem não tem paciência pode apelar para o cartão de crédito e acelerar a compra de pacotes. Dois pacotes com cinco cartas aleatórias cada um custam US$ 2,99. A Blizzard não revela o faturamento de suas franquias, mas dá sinais de estar muito satisfeita com os resultados.

“Hearthstone superou todas as expectativas”, disse o CEO da Blizzard, Mike Morhaime, durante uma conferência com investidores. “Não estamos prontos para divulgar os números, mas estamos animados com o futuro de Hearthstone, especialmente quando se considera a expansão para outras plataformas.” No Brasil e na Rússia, o aplicativo é o 11º game de iPad em termos de faturamento, segundo a consultoria App Annie. Nos EUA, estava em 33º. O Hearthstone, por sua vez, já foi o aplicativo que mais ganhou dinheiro em 52 países, ao menos por um dia. A próxima cartada da Blizzard é levar o Hearthstone aos smartphones, no primeiro semestre de 2015. “Fizemos um grande esforço para que a experiência nos tablets fosse tão boa quanto nos PCs”, diz Chayes.