01/07/2011 - 6:00
DINHEIRO ? As empresas no Brasil aprenderam a trabalhar produtos e serviços para a base da pirâmide?
Marcelo Neri ? Estão aprendendo, é um processo lento. A classe média, a chamada classe C, cresce mais rapidamente do que as pessoas jurídicas, o governo e os políticos perceberam, e essa ficha está caindo só agora: ela tem mais poder de compra que as classes A e B juntas, ou seja, do ponto de vista econômico, é muito mais importante. É onde está a maior parte do dinheiro do Brasil e, ainda, é a maioria da população. Para os políticos, ela sozinha seria capaz de decidir uma eleição. Assim, começa a ser objeto de empresas, de políticos.
DINHEIRO ? Qual é o poder de compra desse grupo?
NERI ? A chamada classe C, com renda familiar entre R$ 1,2 mil e R$ 5,3 mil mensais, responde por 46,3% do total de consumo no Brasil, contra 45% dos consumidores AB. Apesar de a classe AB ser bem menos numerosa, ela concentra mais renda, mas, no equilíbrio das forças, é a classe C a dominante. É para esse fato que as empresas, no Brasil, estão acordando. E não só as empresas daqui, mas as do Exterior também, até porque o mundo está estagnado. Quem cresce são os Brics.
DINHEIRO ? E como está o Brasil entre os Brics?
NERI ? Somos um País que está crescendo, não tanto quanto a China, mas onde a população mais pobre está experimentando um crescimento chinês, porque a desigualdade está caindo. Segundo a pesquisa que conduzimos, ?Os Emergentes dos Emergentes?, há pelo menos três anos não existe ninguém mais otimista no mundo que os brasileiros. Numa pergunta para graduar, de zero a dez, a perspectiva ?de como você estará dentro de cinco anos?, ninguém, entre 144 países, dá uma nota mais alta que o brasileiro: 8,7. Sem dúvida, é um componente cultural, mas a pesquisa mostra que há razões para essa visão positiva sobre o futuro.
DINHEIRO ? A pesquisa rompe com algum mito que havia em relação à classe C?
NERI ? Acho que estávamos superestimando o lado do consumo, que chama a atenção das empresas. Mas a mim, chama mais a atenção o lado ?produtor? desse grupo. Criamos um índice dos ativos produtivos ? que engloba investimento em educação na família, renda, qualidade de emprego etc. ? e o índice do consumo (acesso a bens duráveis, moradia, serviços públicos, principalmente), usando a mesma métrica. Esses ativos produtivos da classe C crescem 38% a mais que os ativos de consumo. Ou seja, o crescimento de renda no Brasil talvez seja mais sustentável do que a tese daqueles que acreditam que essa melhora é movida apenas a crédito ao consumidor. E eu também achava até que o lado consumidor do público da classe C cresceria mais que o lado produtivo. A pesquisa derrubou essa ideia.
DINHEIRO ? Há algum fator que explique essa mudança de paradigma?
NERI ? Nossa grande revolução foi o emprego com carteira assinada. Antes dela, houve outra revolução, que foi o aumento da escolaridade e educação profissional. O nível de educação no Brasil é bom? Não, é muito ruim. Só que é menos ruim do que já foi. E essa má notícia, de que ainda é muito ruim, enseja uma boa notícia, que é o fato de que podemos continuar melhorando, para nos tornarmos um país melhor.
“A nova classe média quer serviços de qualidade da iniciativa privada, como a escola particular”
Alunos de escola pública na cidade de São Paulo
DINHEIRO ? Por que é uma surpresa que o índice de ativos produtivos cresça mais que o lado consumista?
NERI ? Com acesso à educação, previdência social e melhora da qualidade de emprego, fica claro que esse grupo emergente investe na manutenção da sua renda no futuro. Foi até uma surpresa para mim, ou seja, ele é um consumidor mais sustentável do que eu mesmo imaginava. Ele está tendo menos filhos, está estudando, e tem emprego com carteira assinada. Essa é a revolução. O cartão de crédito é parte da vida dele, é coadjuvante, e não o que se pensava até agora.
DINHEIRO ? Essa mudança já teve início há mais de uma década, certo?
NERI ? A redução da desigualdade começou há 11 anos, mas ela já havia sido plantada antes.
DINHEIRO ? Inclusive, com a estabilidade da moeda, por exemplo.
NERI ? Sim, com a estabilidade e com a melhora da educação, iniciada com o ex-ministro da Educação, Paulo Renato Souza, que faleceu na semana passada. Ele exerceu esse cargo entre 1995 e 2002 e foi um grande protagonista dessa melhora. Os frutos estão sendo colhidos agora. Outras sementes estão sendo plantadas. Hoje, o Brasil segue o chamado caminho do meio, com um Estado forte, com programas sociais, educação e saúde, mas com um mercado também forte. A combinação entre as forças do mercado e do Estado tem nos deixado com o lado bom desses dois mundos, com seus defeitos e virtudes, claro. Crescemos e distribuímos renda. Somos um dos poucos países a viver esse privilégio. No mundo atual, no qual alguns países árabes enfrentam turbulências, a Europa encara uma grande estagnação, a desigualdade aumenta, inclusive nos outros Brics, apesar da prosperidade. E o Brasil, nisso tudo, está equilibrado. É crescimento, mas é distribuição de renda. É Estado forte, mas é mercado forte também.
DINHEIRO ? Distribuição se dá por programas sociais ou não é o fator decisivo?
NERI ? Isso contribui, mas o fator determinante é a educação. Esse é o grande diferencial. Como a economia estava estagnada, a educação não gerava esse efeito. Ela serviu como uma aplicação numa caderneta de poupança. Estamos colhendo os frutos. Claro que deveríamos ter investido muito mais e melhor.
DINHEIRO ? Há algo que a classe C deseja e as empresas ainda não perceberam?
NERI ? O brasileiro quer consumir serviços públicos de melhor qualidade no setor privado. Quer colocar o filho na escola privada, quer um plano de saúde privado, uma previdência privada, e uma série de serviços produtivos: microcrédito, assistência para acessar mercado, educação profissional. Estamos focando nessa classe como se fosse ?um sonho de uma noite de verão?, no estilo ?vou consumir, vou às compras?, e esse público está muito mais à frente do que a gente enxerga. Eles olham para o futuro. Estão com a faca entre os dentes porque sabem que dependem do trabalho deles mesmos.
DINHEIRO ? Hoje são 115 milhões de brasileiros na classe C?
NERI ? Sim. E nos últimos 21 meses tivemos ascensão de 13,3 milhões às classes A, B e C. É crescimento em cima de crescimento. Se achávamos que o Brasil tinha um mercado grande, antes, estávamos enganados. O que temos é um mercado grande, agora. E que pode ser muito maior ainda. É importante não olhar as pessoas de uma maneira passiva, como se fosse possível dar apenas um programa social, um cartão de crédito a esse público. Nada contra, faz parte. Mas não é a parte principal.
DINHEIRO ? Intempéries globais, como a crise grega, não podem afetar esse processo de melhora da classe C no Brasil?
NERI ? Sem dúvida, mas eu diria que a nossa classe média é nosso seguro de vida. É o Neymar, ou o Pelé da nossa economia, está fazendo os gols de que o Brasil precisa. Está mantendo a roda da economia funcionando. Todos são sujeitos a intempéries globais, mas o Brasil menos, porque nosso mercado interno é grande. Tudo bem, se a China tiver problema, nós podemos sofrer também, mas veja que coisa. A China hoje quer fazer o mesmo que o Brasil. O centro do plano quinquenal chinês é distribuir renda.
DINHEIRO ? O Brasil distribui mais renda que a China?
NERI ? A China está aumentando brutalmente a sua desigualdade social e percebeu que não é um bom caminho. Poupar 40% do PIB, tudo bem, é visto como um dado de qualidade, mas que vida você tem se guarda 40% da sua renda? E não acho que o brasileiro é o oposto disso. Não somos perdulários, nossa taxa de crédito em relação ao PIB ainda é baixa. Claro, nossos juros ainda são altos. Mas acho que lançar luz sobre esse dado é importante. Por que o nosso juro é tão alto? Parte disso, porque o brasileiro é muito otimista em relação ao futuro, você precisa de uma taxa de juros alta para segurar um pouco a onda.
“O ex-ministro Paulo Renato foi um dos grandes protagonistas da mudança que vivemos hoje”
Paulo Renato Souza , ex-ministro da Educação
DINHEIRO ? O que fazemos melhor que os chineses?
NERI ? Temos um mercado operante, democracia operante, um Estado não tão operante quanto gostaríamos, mas também não piorou. Isso cria uma base sólida, um mercado forte. O Brasil é diversificado, está nesse caminho do meio, com classe média em expansão, e fazendo escolhas certas. O brasileiro quer o caminho do meio. Se houver alguém que radicalize na cena política, por exemplo, ele não quer mais.
DINHEIRO ? Onde o Estado pode melhorar?
NERI ? Deveria fazer mais parcerias público-privadas. É preciso saber como combinar esses dois lados.
DINHEIRO ? Vemos isso em saneamento, onde o governo tem dinheiro, há empresas querendo investir, e um processo travado…
NERI ? Nós estamos fazendo um projeto para o Banco Mundial em que defendemos uma Bolsa Saneamento, mostrando que, se dermos dinheiro à população de baixa renda, ela compra saneamento.
DINHEIRO ? A inércia para eliminar a miséria já se firmou, independentemente de quem governar? Ninguém vai matar a galinha dos ovos de ouro?
NERI ? O brasileiro está fazendo boas escolhas, ele é o grande protagonista dessa ascensão social. Ele é o cara.