05/05/2016 - 19:17
O engenheiro Jerson Kelman, doutor em hidrologia pela universidade americana Colorado State, está diretamente ligado às crises mais recentes nos setores elétrico e hídrico do Brasil. Em 2001, um estudo realizado por ele para explicar as causas do apagão de energia elétrica foi considerado o mais completo relatório para determinar as falhas do sistema. Por esse motivo, seu trabalho ficou conhecido como “Relatório Kelman” e se tornou referência. No início do ano passado, no pico da mais grave seca em São Paulo, ele assumiu a presidência da Sabesp com a missão de evitar um colapso de água. Para ele, essa crise acabou. Questionado se havia encontrado o segredo da dança da chuva, Kelman responde: o que evitou o caos na cidade mais importante do País foi gestão e bom senso. “O dado mais relevante é que houve uma mudança de hábito da população, que é algo permanente”, diz ele. “Tinha dúvidas se isso aconteceria, porque no caso do setor elétrico a diminuição da demanda era atribuída a mudanças de lâmpadas. Aqui, o paulistano teve bom senso.” Apesar do elogio, o presidente da Sabesp rebate as críticas que a empresa recebe dos consumidores, que não estão dispostos a pagar a mais para receber um serviço igual ao prestado na Suíça ou em Londres.
DINHEIRO – Qual é a chance de acontecer novamente uma seca como a de 2014? 
JERSON KELMAN – A probabilidade de ocorrência da hidrologia de 2014 é um cálculo simples de volume e efluente ao Sistema Cantareira. É o primeiro teste que faço com os meus alunos, que dá 0,004%. Tenho usado esse número para dizer que é uma tolice aqueles que disseram que faltou planejamento. Foi feito um plano para a macrometrópole, que ficou pronto em outubro de 2013. Ele preparava a cidade para uma hipótese hidrológica com o pior que já aconteceu em 80 e tantos anos, que foi a seca de 1953. Se aquela terrível coisa acontecesse de novo, nós enfrentaríamos. Mas, em 2014, veio metade da água daquela tragédia de 1953. Então, não é que não houve planejamento. Agora, porém, é diferente, pois sabemos que pode acontecer de novo e estamos preparados para o que foi 2014. Isso significa pesadas obras para trazer nova água. Estamos investindo no que é muito necessário. Os projetos menos urgentes, que estão relacionados à coleta e ao tratamento de esgoto, vão para o final da fila. O mais importante é ter água na torneira. Mas só vamos ter essa segurança quando as obras ficarem prontas em 2017 e 2018. Itapanhaú nem começou ainda, pois estamos na fase de licença ambiental.
DINHEIRO – Por que o projeto Itapanhaú é tão importante?
KELMAN – Esse é a menina dos meus olhos, por ser uma obra simples. Os rios curtos, que descem para o mar, são muito caudalosos, então é possível captar água perto do cume. No riozinho chamado Itapanhaú, é só bombear um pouquinho e jogar para o outro lado da montanha. Lá chove torrencialmente, cerca de 3 mil milímetros. É água puríssima, uma maravilha. Essa é uma solução semelhante à que Nova York teve na primeira metade do século XIX. A água vem das montanhas, numa distância de 160 quilômetros até Nova York. Depois de um tempo, essa área começou a ter agricultura e a cidade precisou fazer um pacto com eles para manter a área preservada, e para que Nova York pudesse ter água puríssima. Aqui, nós temos a floresta preservada, então não precisaremos fazer pacto no futuro com agricultores. Hoje, a dúvida é se bicho também é gente, porque os bichos têm direito a essa água, o ser humano não. Para que se preserva o manancial? Para ter água limpa e poder usar.
DINHEIRO – A crise hídrica acabou? 
KELMAN – Sim, acabou. Porque estamos tirando menos água, por causa da mudança de hábito da população, e porque temos um estoque razoável. Não estou dizendo que nunca mais vai ter seca, isso não existe. Mas estamos nos preparando para que se as condições hidrológica de 2014 e 2015 vierem a acontecer novamente, não vamos passar por esse sufoco. Em outubro de 2014, chegou a sair 5 m3 por segundo [o normal é 33 m3 por segundo]. Então, é o fiapo d’água, uma situação terrível. A população em São Paulo teve bom senso. Parece incrível, mas teve de mudar o comportamento para evitar uma situação de calamidade.
DINHEIRO – A cidade de São Paulo chegou perto de ficar sem água?
KELMAN – Chegou, sim. Eram 5% de estoque de água. Se chegasse a zero, não é que seca tudo, mas só se pode tirar do sistema aquilo que entra. Lógico que quando assumi a presidência da empresa, uma das primeiras ações foi ter um plano para se o pior acontecesse. Como se garante água para grandes hospitais e penitenciária? E encontrava enorme incompreensão das pessoas, que questionavam por que não teria água em todas as escolas? É impossível. As aparentes soluções não são viáveis, pois não se fazia contas elementares nem se calculava que não há frota de caminhões-pipa para levar água para todo mundo.
DINHEIRO – Havia uma possibilidade de mexer com o agronegócio, o maior consumidor de água. Essa alternativa foi tentada? 
KELMAN – Dessa seca, muitas críticas foram feitas à Sabesp, mas uma falha que ocorreu foi na gestão da água bruta. A Agência Nacional de Águas (ANA) poderia ter gerenciado o uso da água bruta na bacia de rio Piracicaba. Seria didático numa ocasião de tamanha comoção social. O metro cúbico de água utilizado na agricultura rende, sob o ponto de vista de resultado econômico, menos do que a água usada no meio urbano. Porque a água vale muito mais na cidade do que vai ser o produto agrícola. É por isso que todos os países têm gestão de recursos hídricos e para isso foi criada a ANA. Em 2001, eu era presidente e tivemos um problema parecido com esse no Ceará. Lá era uma disputa para irrigação de arroz, que é um produto de pouquíssimo valor econômico. É preciso muita água para fazer R$ 1 de arroz. A pergunta era por que fizeram no semi-árido uma cultura que bebia toda a água do reservatório? Havia uma plantação de manga, que é uma cultura que demora muitos anos até a mangueira dar fruto. Propus aos agricultores da manga se eles queriam entrar numa vaquinha para convencermos os agricultores do arroz a não usar água. Era uma indenização, algo que se faz em todo lugar. Na Austrália é assim, no Oeste americano também. O gestor aloca a água da forma mais inteligente, sem prejudicar o irrigante. Naquele caso, foi bem-sucedido. Ao contrário do Cantareira, que tinha de ter feito algo parecido. Poderíamos ter criado uma sobretaxa pequenininha para os consumidores urbanos, um fundo para pagar os irrigantes, para eles não ficarem sem renda. Ia ser uma insignificância, algo que ninguém nem ia notar. E seria didático. Não é que teria evitado a seca, não é isso. Mas teria mostrado o que pode ser feito com gestão, para usar melhor um produto que é escasso. Mas nada foi feito. Eu, como ex-presidente e criador da ANA, fiquei frustradíssimo, porque era uma oportunidade de ouro.
DINHEIRO – Como o sr. avalia o serviço prestado pela Sabesp? 
KELMAN – A população acha que a tarifa traduz o necessário para prestar um serviço padrão suíço ou sueco, mas que não recebem o padrão de primeiro mundo. Por isso o Tietê está sujo, porque os dirigentes são incompetentes ou corruptos. Mas não é isso. A Sabesp é internacionalmente competente, então não há dificuldade técnica de ter padrão de primeiro mundo. A questão é que não fizemos os investimentos necessários ainda para isso. Os investimentos que a Sabesp faz dependem exclusivamente das tarifas pagas pelos consumidores. E isso é bom. O governo estadual não coloca dinheiro na empresa, e não deve colocar. Os investimentos dependem dos lucros. E há uma demonização do lucro, como se fosse uma coisa ruim. Claro que os acionistas da Sabesp têm uma postura de receber como dividendos o mínimo que a lei determina. O resto é reinvestido, e isso é de interesse da população.
DINHEIRO – A tarifa está aquém do necessário para prestar esse serviço de primeiro mundo?
KELMAN – O típico consumo de uma família é de 10 m3. Em São Paulo, a conta de água sem desconto é de R$ 40, em números redondos. Se entrarmos no Tamisa Water para ver quanto custa a água de Londres, encontraremos R$ 170, ou seja, mais de quatro vezes. Por quê? Operário britânico ganha mais que o brasileiro, é verdade. Mas não é só isso. O investimento lá é maior. Nós andamos com a velocidade que conseguimos com a conta de água. O nosso teto é a renda das famílias mais pobres e precisamos alargar a base da tarifa social, para não nivelar por baixo. Ou seja, ampliar a turma que paga R$ 7, que hoje são mais de 300 mil cadastrados. Por outro lado, é preciso aumentar em R$ 20 a conta de toda a classe média. É o que se paga de gorjeta num restaurante ou no estacionamento. Se a classe média pagasse R$ 20 a mais por mês na conta de água, acelerávamos todos os projetos. Mas a nossa classe média não valoriza isso e acha que o serviço não está de qualidade, não está londrino, porque todo mundo é incompetente. Nossos valores estão meio tortos.
DINHEIRO – Mas é possível atingir um serviço padrão londrino?
KELMAN – Vamos ter, estamos caminhando nessa direção. O problema é a velocidade. O Tietê vai virar navegável, assim como o Tâmisa, que tem uma poluição difusa. O fato de recolher todo o esgoto, como em Londres, e tratá-lo, não quer dizer que não tenha poluição no Tâmisa. Tem o lixo da rua, apesar que o recolhimento lá é muito melhor que o nosso. Grandes metrópoles têm problemas, mas quero dizer que podemos ter padrão londrino ou parisiense, o problema é só velocidade.
DINHEIRO – Quando será possível reduzir o índice de perdas, que está em torno de 30%?
KELMAN – O nosso índice caiu muito por causa da seca, mas vai subir agora. Em perdas, há uma parte que é a física, da Sabesp, que durante a seca caiu para 18%. Esses são os vazamentos. Mas, além deles, tem uma perda da água não contabilizada. Às vezes é água não medida, como nas caixas d’água, que têm hidrômetros com certa faixa de imprecisão. A pessoa está consumindo água e a maior parte delas acha que o hidrômetro está medindo errado contra eles. Mas não, quase sempre é contra a empresa. É a favor dos consumidores por um problema tecnológico. Isso não é furto, mas é água não medida. Voltei recentemente de Israel e vi uma série de tecnologias muito interessantes de controle de perdas. A Sabesp tem diminuído a taxa de 1% ao ano, que é bom. O Japão, no final da Segunda Guerra, tinha 70% de perdas. Hoje, tem 3%. Diminuiu ao longo dos anos e hoje é o país campeão mundial. É até exagerado, porque chega um ponto que custa mais caro esse ponto do que o preço da gota. Tem cidades que perdem um montão de água, como Londres e Chicago, e não precisam se preocupar. Aqui não, temos de diminuir. É importante deixar claro que a ideia de que tem de diminuir sempre a perda de água é errada. Nem sempre. A longo prazo queremos chegar a uns 10%, mas estamos longe.
DINHEIRO – Por que aceitou esse desafio?
KELMAN – O governador Geraldo Alckmin nem me conhecia direito. Eu tinha estado com ele uma vez, há 14 anos, e acho que ele nem se lembra. Eu era presidente da ANA, foi uma conversa rápida, nem sei se ele se lembra disso. Falo isso para elogiá-lo. O governador procurou uma pessoa que ele entendeu que tecnicamente podia ajudar. Aceitei porque depois das explosões de bueiro da Light e de ser interventor da Enersul, tenho uma necessidade por adrenalina. O próximo passo é o bungee jumping (risos). Brincadeira, estou bem satisfeito, a Sabesp é uma empresa sofisticada, competente e bem organizada.