Escolhido por Netanyahu para distribuir comida no enclave palestino, grupo com histórico opaco é visto com desconfiança por outras organizações humanitárias, que suspeitam de “disfarce” para forçar deslocamento em massa.Tropas israelenses dispararam nesta terça-feira (27/05) tiros de advertência contra milhares de palestinos famintos que haviam se dirigido a um centro de distribuição de alimentos na Faixa de Gaza. O episódio escancarou não só a crescente situação de desespero no enclave acossado pela guerra, mas também falhas na atuação de uma misteriosa organização novata apoiada pelos EUA e Israel para liderar iniciativas de ajuda humanitária em Gaza, contornando ONGs e grupos com mais experiência na região.

Imagens distribuídas pela rede BBC e pelo jornal The New York Times mostraram milhares de pessoas se amontoando para tentar conseguir caixas de alimentos num centro de distribuição em Rafah, no sul de Gaza. O centro havia sido instalado pela chamada Gaza Humanitarian Foundation (GHF), um grupo criado em fevereiro e que até onde se sabe não tem histórico de atuação relevante em lidar com crises humanitárias, mas que mesmo assim recebeu sinal verde dos EUA e de Israel para controlar a distribuição de ajuda em Gaza.

Até mesmo as origens do grupo são opacas. Inicialmente, se falou que o grupo tinha registro na Suíça, mas jornalistas não encontraram nada no endereço indicado. Mais tarde, o The New York Times apontou que também há um registro no estado americano de Delaware.

Além disso, segundo informações do The New York Times e do jornal israelense Haaretz, a GHF mantém laços estreitos com duas empresas dos EUA que ficaram responsáveis por garantir a segurança nos centros de distribuição em Gaza.

Essas empresas são a Safe Reach Solutions (SRS) e UG Solutions. A primeira delas é ligada a um ex-agente da CIA. De acordo com o The New York Times, não está claro de onde vem o dinheiro da GHF, tanto para pagar as firmas de segurança quanto para distribuir os alimentos.

Organização de fachada israelense?

Adicionando ainda mais confusão, o diretor da GHF, Jake Wood, ex-fuzileiro naval americano, anunciou publicamente no domingo sua renúncia como diretor da organização, afirmando que não podia cumprir sua missão “respeitando estritamente os princípios de humanidade, neutralidade, imparcialidade e independência”.

Wood era o rosto da GHF desde que ela se tornou uma peça central no plano apoiado por Israel e Estados Unidos para distribuir ajuda em Gaza. Anteriormente, Wood comandou esforços de socorro em desastres realizados pela ONG Team Rubicon, da qual foi cofundador em 2010.

Apesar de ter perdido seu diretor, a fundação informou ter iniciado suas operações para entrega de alimentos em Gaza na segunda-feira (26/05). Outros grupos humanitários com experiência, além da própria rede de agências da ONU, continuam impedidos de entrar na região.

Na segunda-feira, o líder da oposição israelense, Yair Lapid, acusou o governo de Benjamin Netanyahude estar por trás da GHF e da empresa de segurança SRS. Segundo Lapid, tudo indica que se tratam de “empresas de fachada” e que na realidade Israel está secretamente financiando os esforços – uma afirmação rapidamente negada pelo gabinete do primeiro-ministro.

“Nosso trabalho é fazer perguntas difíceis ao governo e, com essa pergunta, eu subo ao pódio hoje. O Estado de Israel está por trás de duas empresas de fachada estabelecidas na Suíça e nos Estados Unidos, a GHF e a SRS, para organizar e financiar a ajuda humanitária em Gaza?” perguntou Lapid na tribuna do Knesset, o Parlamento israelense.

Uma reportagem do The New York Times parece endossar as suspeitas de Lapid. Citando funcionários israelenses que falaram sob condição de anonimato, o jornal apontou que esse plano de usar organizações pouco conhecidas foi “concebido e desenvolvido em grande parte por israelenses como uma forma de prejudicar o Hamas”.

Por décadas, a Agência da ONU para os Refugiados Palestinos (UNRWA) foi responsável por distribuir assistência humanitária em Gaza, com a ajuda de outras organizações. Mas Israel acusou funcionários desta agência de estarem envolvidos no ataque do Hamas de 7 de outubro de 2023 e proibiu suas atividades em seu território.

Uma série de investigações detectou alguns “problemas relacionados à neutralidade” dentro da UNRWA, mas destacou que Israel não apresentou provas conclusivas para apoiar sua principal acusação. Desde então, Israel passou a trabalhar em outro esquema para contornar ONGs e outros grupos tradicionais. Dessa forma, segundo o The New York Times, nasceu a GHF.

Riscos e críticas

Grupos humanitários afirmam que as ligações da GHF com os israelenses minam o princípio de que a ajuda deve ser supervisionada por uma parte neutra. Ou seja, que países diretamente envolvidos no conflito, como Israel e seu aliado EUA, não são partes neutras.

“A ajuda deve ser fornecida por partes neutras que não estejam envolvidas em conflitos”, aponta Thea Hilhorst, pesquisadora de ajuda humanitária da Universidade Erasmus de Roterdã, na Holanda. “Nesse caso, Israel assume o controle, Israel não é neutro, [é] uma força de ocupação e uma parte em guerra.”

Jan Egeland, Secretário Geral do Conselho Norueguês de Refugiados, disse à rede BBC que a GHF é “militarizada, privatizada, politizada” e “não está em conformidade com a neutralidade”. “As pessoas por trás dele são militares – são ex-CIA e ex-militares… Devíamos voltar ao sistema que funcionava”, disse ele.

Outra crítica contra a GHF é seu método de designar “lugares de distribuição seguros”, que muitas organizações afirmam ir contra os princípios da ajuda humanitária, pois obriga a população a se deslocar em meio a um conflito. Normalmente, ONGs mais tradicionais dão preferência por levar diretamente os alimentos para pessoas em necessidade, e não as obrigar a se deslocar por grandes distâncias.

Segundo funcionários de outras organizações humanitárias, para acessar esses locais de distribuição, espera-se que os palestinos tenham que se submeter a verificações de identidade e a uma triagem para verificar potencial envolvimento com o Hamas.

Além disso, todos esses centros estão sendo montados no sul de Gaza, onde vivem relativamente poucos palestinos, mas que é justamente a área na qual os israelenses pretendem concentrar a população de Gaza em meio ao plano de “conquista” da região. Israel está em guerra contra o Hamas desde o ataque terrorista em 7 de outubro de 2023 organizado pelo grupo, que deixou 1.200 mortos e levou à captura de cerca de 250 reféns.

Plano de três etapas

Na semana passada, o primeiro-ministro de Israel delineou um plano de três etapas, que incluía “criar uma zona no sul da Faixa [de Gaza], para onde a população civil será evacuada”. Netanyahu afirmou ainda que, em seu plano, os palestinos que entrarem nessa zona no sul não necessariamente retornariam para o norte.

Hilhorst disse à DW que a medida equivaleria a uma limpeza étnica e que os centros de distribuição podem ser uma ferramenta para atrair a população para o sul. “Ele [Netanyahu] está usando isso como uma espécie de ferramenta para remover pessoas da Faixa de Gaza, o que é a instrumentalização da ajuda para fins de guerra”, destacou.

Além disso, mesmo que as ligações com os israelenses e objetivos militares obscuros fossem descontados, especialistas apontam que não há sinais que a GHF e sua dupla de empresas de segurança vão conseguir de fato alimentar os 2 milhões de palestinos que vivem no enclave devastado pela guerra.

“Esse exercício vergonhoso de militarização da ajuda não vai funcionar”, afirmou Bushra Khalidi, diretor da ONG Oxfam no território palestino ocupado, ao jornal britânico The Guardian. “Mesmo nas condições mais ideais, não há empresa de logística que possa alimentar 2,1 milhões de pessoas da noite para o dia. O humanitarismo não se trata apenas de distribuir pacotes de alimentos para alimentar famintos; trata-se de garantir que as pessoas tenham os meios para sobreviver.”

Distribuição de alimentos segue afetada

Após o início das operações da GHF, outras agências internacionais voltaram a pedir a retomada completa do serviço humanitário. “Há um sistema humanitário internacional testado e comprovado que respeita o direito internacional humanitário em todo o mundo. Isso não precisa ser reinventado. Poderia funcionar em sua capacidade máxima para trazer ajuda, se fosse permitido, mas não está sendo”, afirmou Jonathan Fowler, porta-voz da UNRWA.

Apesar do início do retorno da distribuição de ajuda, veículos de organizações humanitárias independentes ainda estão sendo impedidos de entrar em Gaza. Nesta quarta-feira (28/05), autoridades do enclave controlado pelo Hamas anunciaram que quatro palestinos morreram após uma multidão desesperada invadir um armazém de comida das Nações Unidas – reprise das cenas de caos do dia anterior descritas na abertura deste texto.

“Um cerco está isolando o território do exterior, e é isso que estamos vendo aqui em termos de abastecimento”, avaliou Sarah Schiffling, vice-diretora do Instituto de Pesquisa em Logística Humanitária e Cadeias de Suprimentos, com sede na Finlândia. Ela destacou ainda que a situação em Gaza requer que mais caminhões carregados com itens essenciais possam entrar no território.

Além dos caminhões que já estão em Israel, a UNRWA informou que outros 3 mil veículos carregados com suprimentos, incluindo medicamentos com risco de vencimento, aguardam autorização para cruzar a fronteira na Jordânia e no Egito.

jps/cn/ra (AFP, AP, DW, ots)