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“No futebol existiu um Garrincha. Na economia não há mágica”

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“Palocci é realmente mais ortodoxo que o Malan. E isso não é ruim”

 

 

DINHEIRO ? Faz sentido essa ofensiva do governo argentino contra o Brasil?
MURPHY ? Esse atrito é artificial e pode ser facilmente resolvido. A posição do governo argentino não ajuda em nada. Nas questões de comércio, a saída é melhorar as regras de integração, de competitividade e de cobrança de tarifas, áreas nas quais não conseguimos avançar como avançou a Europa, por exemplo.

DINHEIRO ? Como se resolve isso se toda semana o governo argentino lança uma nova crítica ou afronta ao governo brasileiro?
MURPHY ? As relações históricas e geográficas do Brasil com a Argentina sempre foram de muita integração, tanto comercial, como cultural, social e política. O problema é que tivemos só metade da integração que poderíamos ter tido e o motivo foi a ação individual dos políticos, a falta de diálogo. Os empresários nada têm a ver com isso. Eu ainda acredito no Mercosul e na sua viabilidade.

DINHEIRO ? Os empresários argentinos culpam o Brasil por parte de sua perda de competitividade. Além disso, a Argentina acusa o Brasil de não ter dado apoio à reestruturação da dívida…
MURPHY ? Só faltava agora colocarmos a culpa dos nossos fracassos no Brasil. Seria o mesmo que o governo brasileiro apontar Portugal como responsável pela elevada dívida brasileira. O governo argentino é muito complicado. Até agora não achou um rumo para o país. A crise argentina é culpa dos argentinos. O Brasil não tem nada a ver com as negociações com o FMI ou com os credores.

DINHEIRO ? Mas parece que esse tipo de atitude reforça a popularidade do presidente Kirchner, que segue alta.
MURPHY ? A única certeza que tenho é de que essa postura do Kirchner não é boa para o país. É só imagem. O governo argentino vive brigando com o FMI, mas não deixa de pagar a dívida. Depositamos milhões de dólares na conta do Fundo todos os meses. E é isso que tem de ser feito. Essas posições irracionais, no longo prazo, não darão resultado. Os países que crescem não fazem isso. A China não faz, a Tailândia não faz e o Chile não faz.

DINHEIRO ? Após a reestruturação da dívida, considerada um sucesso por muitos analistas, a Argentina parece estar se recuperando…
MURPHY ? A reestruturação da dívida ainda não acabou. Enfrentamos uma série de processos de credores em Nova York e enquanto isso não acabar, a Argentina não conseguirá voltar à normalidade. O governo argentino está fazendo algo que ninguém fez, não está seguindo as medidas tradicionais.

DINHEIRO ? E isso não é bom?
MURPHY ? Se você me perguntar se eu teria feito a mesma coisa, eu diria que não. Eu teria seguido o caminho brasileiro ou uruguaio (que negociou sua dívida pagando mais que os argentinos aos credores). O Uruguai fez uma reestruturação e a concluiu em dois meses. Nós já levamos três anos e não a resolvemos.

DINHEIRO ? Então, o que explica a forte recuperação da economia?
MURPHY ? Se comparamos a evolução do PIB da Argentina e do Brasil desde 1998, o Brasil cresceu muito mais. O que a Argentina fez foi despencar e começar a voltar ao que era em 1998. Essa recuperação não é nem um pouco surpreendente. O PIB do Brasil hoje é maior que o de 1998. O da Argentina ainda não.

DINHEIRO ? Mas a economia cresce acima dos 7% há dois anos e as expectativas do governo argentino para este ano também são bastante otimistas.
MURPHY ? O grande desafio da Argentina será o próximo ano. Até agora tivemos muita sorte. Os preços das commodities estavam em alta e o petróleo também ajudou porque, ao contrário do Brasil, a Argentina exporta petróleo. Também tivemos taxas de juros internacionais muito baixas e por último, todos os países que nos rodeiam registraram forte recuperação, como Brasil, Chile e o próprio Uruguai. A Argentina se beneficiou da boa onda dos vizinhos.

DINHEIRO ? Mas o fato é que a economia argentina está se recuperando mesmo com a moratória e em breve deve voltar a atrair investimentos…
MURPHY ? Não podemos simplificar desse jeito. Imagine que você está há anos numa UTI e agora foi deslocado para a sala de recuperação. Visto assim, claro, tivemos uma tremenda recuperação. Mas o fato é que ainda não conseguimos caminhar. Então, não podemos dizer que estamos recuperados.

DINHEIRO ? No Brasil há quem defenda uma reestruturação da dívida que reduza os gastos com juros.
MURPHY ? O Brasil já está negociando sua dívida nos leilões do Tesouro Nacional. O que precisa fazer é diminuir os juros nas próximas negociações, mas isso só acontecerá quando reduzir a dívida. No Brasil se faz o que fazem todos os países do mundo. Não dá para ir contra o que pensa todo mundo. Só a Argentina acha que pode. Vou usar um exemplo futebolístico: para fazer coisas criativas é preciso ser Garrincha. E não acredito que somos Garrincha. Estamos longe disso. Não existe uma solução mágica. O caso argentino não é exemplo para ninguém.

DINHEIRO ? Mas o custo de seguir essas regras é muito elevado. O Brasil, por exemplo, tem um superávit primário imenso, que ainda assim não é suficiente para pagar os juros da dívida…
MURPHY ? Eu não concordo. Para mim, o superávit brasileiro é insuficiente. Deveria ser ainda maior. Por que penso assim? O que determina o superávit é o tamanho dos juros. Se o juro brasileiro é alto, o superávit tem de ser alto. O superávit poderá diminuir quando os juros caírem.

DINHEIRO ? Mas isso se transforma numa bola de neve. A saída seria afrouxar a meta de inflação, hoje de 5,1%?
MURPHY ? Eu não acho que a meta de inflação brasileira seja baixa demais. Ela é metade da meta do Chile (fixada em 3%, com margem de 1 ponto para baixo ou para cima). A meta brasileira é razoável.

DINHEIRO ? O Sr. não acha que o preço pago para manter essa meta é alto demais para a sociedade?
MURPHY ? Não acho. Essa discussão no Brasil de que os juros são altos por causa da meta de inflação é estéril. O juro não é alto por causa da inflação. Os problemas do Brasil são o desequilíbrio fiscal e a dívida, que é muito alta. É a dívida que determina esse juro alto pago pelo Brasil.

DINHEIRO ? Voltamos para a polêmica do efeito bola de neve. Dívida alta exige juro maior e o aumento do juro eleva a dívida. Qual seria a alternativa então?
MURPHY ? Reduzir a dívida e o déficit fiscal. A relação entre dívida e PIB do Brasil hoje deveria ser de 20%, mas é de mais de 50%. Eu sei que essa relação já foi maior e acho que a estratégia do governo de reduzi-la é a mais prudente e mais sensata. Não há outro caminho senão o de diminuir a dívida.

DINHEIRO ?Essa política não é liberal ao extremo?
MURPHY ? Isso não tem nada a ver com ideologia econômica. É pura aritmética. Dívida alta exige superávit alto. Os investimentos na área social seriam possíveis se o Brasil não tivesse uma dívida tão alta. Para liberar esses recursos, precisa primeiro reduzir a dívida.

DINHEIRO ? Mas as demandas sociais são urgentes. Não é cruel priorizar números em detrimento de pessoas?
MURPHY ? Se o Brasil não tivesse dívida teria mais espaço para investir e flexibilizar os juros. Vou dar um exemplo: se eu fosse mais magro, teria mais saúde. Se fosse mais jovem, seria mais atraente. Mas eu não sou nem jovem, nem magro. Sou gordo e velho. Me daria muito prazer comer mais, mas não posso fazer isso porque sou gordo e tenho de emagrecer. Acontece o mesmo com o Brasil.

DINHEIRO ?Como conciliar essas necessidades da dívida com a demanda social?
MURPHY ? O fato é que países como o Brasil estão pagando os erros que cometeram no passado. O caminho da moratória, como fez a Argentina, é custoso demais e tem efeitos piores que os adotados pelo Brasil. Você citou a recuperação da economia argentina após a moratória. O problema é que essa recuperação não chegou às pessoas. A Argentina continua com quase 50% de sua população vivendo na pobreza, o nível de emprego não melhorou e a renda dos trabalhadores continua em queda.

DINHEIRO ? No Brasil, o governo Lula tem sido criticado por estar muito ao centro, com um política econômica ortodoxa demais.
MURPHY ? Pois o ministro Palocci é uma autoridade respeitada no mundo inteiro, um dos mais escutados. Está fazendo a política certa, a da disciplina fiscal, e isso não tem nada a ver com ser de direita ou esquerda.

DINHEIRO ? Há quem diga que o ministro do PT está sendo ainda mais ortodoxo que o seu antecessor, Pedro Malan, considerado um liberal.
MURPHY ? Realmente o Palocci é mais ortodoxo que o Malan. E isso não é ruim. Aumentar déficit público é política de idiotas e o Brasil está fazendo um esforço valioso.

DINHEIRO ? O governo do PT poderia então ser considerado liberal?
MURPHY ? De jeito nenhum. O Brasil está numa busca legítima para tentar acabar com as desigualdades. Um governo de direita cortaria impostos e gastos. E o Brasil só sobe os impostos. É um governo de esquerda que age com critério e é assim que se faz um país progressista. Outra coisa, se esse governo pudesse reduzir os juros, o faria imediatamente. O problema é que não pode.