“Quero enriquecer a medicina com um conceito novo: Arbeitscur ­— a cura pelo trabalho.” Extraída de Anna Kariênina, de Liev Tolstói, a frase é dita por um de seus personagens principais, Konstantin Lievin.

Ao contrário da maioria de seus contemporâneos, Lievin é um desses representantes da elite que padece de grande crise de consciência. Como herdeiro, pergunta-se se é justo viver do trabalho alheio; se não há outra forma de se viver as relações sociais de trabalho se não da exploração dos mais pobres e despossuídos.

No contexto em que a referida frase aparece no romance, Lievin, refugiado em sua fazenda, recebe a visita de seu meio-irmão, um intelectual acadêmico que lhe despeja suas concepções teoréticas sobre as relações de trabalho, fato que deixa Lievin irritado e incita sua decisão de trabalhar com os mujiques na ceifa do dia seguinte.

Desacostumado com aquele tipo de faina e trabalhando de forma desajeitada e precipitada, Lievin no começo se esgota e se irrita. Contudo, ajudado pelos surpresos companheiros, pega logo o jeito e passa a experimentar algo novo. “Em seu trabalho ­— conta Tolstói — começou a se verificar uma transformação que lhe proporcionava um imenso prazer. Em meio à sua faina, ocorriam minutos em que ele esquecia o que estava fazendo, tudo se tornava fácil. Porém, tão logo se lembrava do que fazia e se esforçava para fazer melhor, voltava a sentir todo o peso do trabalho e a fileira ficava mal cortada.”

Mais adiante, sob o calor do meio-dia, “a ceifa não lhe parecia tão árdua. O suor, que o encharcava, refrescava-o e o sol, que queimava as costas, a cabeça e o braço […], transmitia vigor e tenacidade ao trabalho; e ocorriam, de modo cada vez mais frequente, os minutos de inconsciência, em que podia não pensar no que fazia. […] Eram minutos felizes.”

“Nos tempos que correm, em que adoecemos por causa do trabalho, chega a ser surpreendente imaginarmos como aquilo que para nós hoje é muitas vezes fonte de desumanização possa se apresentar como fonte de cura. Todavia, os antigos já sabiam que o que nos mata é também o que nos cura — tudo é questão de dosagem”

Nos tempos que correm, em que adoecemos por causa do trabalho, chega a ser surpreendente imaginarmos como aquilo que para nós hoje é muitas vezes fonte de desumanização possa se apresentar como fonte de cura e humanização. Todavia, os antigos já sabiam que o que nos mata é também o que nos cura — tudo é questão de dosagem e, poderíamos dizer também, de sentido e intensidade. Eis aqui, parece, o princípio ativo fundamental que transforma o trabalho em fonte de cura e transformação; em fonte de autoconhecimento, autorrealização e felicidade: trabalhar sem pensar no que se faz. Trata-se, pois, de nos ocuparmos plenamente no trabalho, concentrando nossas forças sem nos preocuparmos com mais nada senão com o que estamos fazendo: concentração sem esforço.

Trabalhar no ritmo do coração, com plena dedicação e concentração; sem nos pouparmos, mas sem nos extenuarmos. Tendo hora para começarmos e para terminarmos. Estando todo lá. Aqui está a conciliação entre o trabalho produtivo e libertador, realizado no espírito da comunidade, no tênue e sábio equilíbrio entre a intensidade e a pausa, entre o esforço e o descanso, entre a solidão e o convívio.

Em tempos tão marcados por desequilíbrio, desconcentração, deslocamento e ausência, reencontrar essa experiência de encontro no meio do esquecimento de si é não apenas uma forma de encontrarmos a cura pelo trabalho, mas também, e principalmente, nossa própria humanização.

Dante Gallian Professor Titular na Escola Paulista de Medicina (EPM-Unifesp) e pesquisador visitante no CEHDI da ISE Business School. Autor de É próprio do humano (Editora Record) e Responsabilidade Humanística: uma proposta para a agenda ESG (Poligrafia)