Considerado um exemplo bem-sucedido de bloco de livre comércio e de fronteiras abertas para cidadãos do continente, a União Europeia (UE) atravessa uma espécie de crise familiar. E a origem dos conflitos, como normalmente ocorre em dinastias, tem o dinheiro como fonte dos problemas. Na quarta-feira 27, liderada por Alemanha e França, a Comissão Europeia aprovou um pacote de 1,85 trilhão de euros para o próximo Orçamento de longo prazo e um fundo de recuperação para economias afetadas pela Covid-19. Cerca de 750 milhões de euros deverão ser levantados por meio de emissão de títulos no mercado financeiro e 1,1 bilhão sairá dos orçamentos individuais dos membros entre 2021 e 2027.

A decisão, no entanto, ameaça causar um racha sem precedentes no bloco, com a discordância de países como Áustria, Dinamarca, Holanda e Suécia, que não querem torrar mais dinheiro para socorrer, de novo, nações como Itália e Espanha. Na última crise financeira global, há uma década, esses países receberam pouco mais de 600 milhões de euros e ganharam o jocoso apelido de Piigs (sigla em inglês para Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha). “Ou todos nós seguimos sozinhos, deixando países, regiões e pessoas para trás e aceitando uma União de ricos e pobres, ou seguimos juntos por esse caminho”, disse a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.

A queda-de-braço pode levar algum tempo e, com isso, agravar a situação do Velho Continente, ainda não recuperado do trauma do Brexit. “O que estamos propondo é algo diferente. A Comissão quer um novo instrumento de recuperação, chamado ‘UE Próxima Geração’, dentro de um Orçamento renovado de longo prazo da EU”, argumentou o bloco, em comunicado.

EMMANUEL MACRON Para o presidente francês, é preciso agir rapidamente e adotar um acordo ambicioso com todos os parceiros europeus. (Crédito:Ludovic Marin)

“O plano vai ajudar a impulsionar nossa economia e garantir que a Europa avance.” Do total, 500 bilhões de euros serão distribuídos por meio de subsídio para os estados membros. Os outros 250 bilhões serão na forma de empréstimos. A Itália receberia 81,8 bilhões de euros, a Espanha, 77,3 bilhões, a Grécia, 22,5 bilhões e a França, 39 bilhões.

QUEDA NA ECONOMIA A injeção trilionária de capital novo é visto como essencial para a longevidade do bloco. As projeções mais otimistas apontam para um encolhimento de 7% da economia europeia neste ano. Os mais pessimistas falam em queda de 12% a 16%, caso surja uma segunda onda do coronavírus, com extensão de medidas de confinamento. O maior obstáculo será convencer os governos conservadores da Áustria e da Holanda, que resistem em tirar mais dinheiro dos cofres públicos para socorrer os países mais pobres. Além disso, esses governos defendem uma exigência de forte compensações a países como a Itália, em que o déficit público e alto endividamento do Estado se tornaram tão culturais quanto a pizza e a macarronada.

“Existe uma pressão crescente para que os países ricos da União Europeia exijam um comportamento mais comedido das nações mais pobres em seus gastos”, diz o economista e professor de relações internacionais, Paulo Siqueira Leite. “Poucos ainda acreditam na capacidade de esses países se manterem na zona do euro.”

O foco principal do programa de ajuda é evitar que a União Europeia se fragmente e que cada um dos 27 países busquem soluções caseiras no combate à recessão. O socorro, embora controverso, é aguardado com ansiedade pelas economias que já têm dívidas altas e que dependem muito do turismo – setor fortemente afetado pela interrupção de parte da economia mundial. “Precisamos agir rapidamente e adotar um acordo ambicioso com todos os nossos parceiros europeus”, disse o presidente da França, Emmanuel Macron, no Twitter. O dilema de ajudar ou não os mais pobres uniu ainda mais a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, e Macron, que afirmam ser fundamental a ajuda para fazer frente à atual “crise sem precedentes”.

ANGELA MERKEL A chanceler alemã defende uma injeção trilionária de euros na economia para amortecer os efeitos da recessão neste ano, que pode chegar a uma queda de 16%. (Crédito: Henning Schacht - Pool)

Interessado em morder parte desse bolo, o governo espanhol afirmou que a proposta serviria como uma base para futuras negociações – deixando claro que poderá estar mais em sintonia com Alemanha e França, caso seja ajudado agora. Em comunicado, o país comemorou a proposta como uma resposta a “muitas das demandas da Espanha”. Na Itália, o primeiro ministro Giuseppe Conte afirmou que o pacote é um bom indício. “Ótimo sinal de Bruxelas, vai exatamente na direção indicada pela Itália”, afirmou Conte. Como em toda briga familiar, é possível que a solução só venha após uma boa disputa.