30/08/2000 - 7:00
Nos últimos anos, enquanto a economia brasileira patinava, uma indústria prosperava indiferente a crises ou recessões. Ela não produz um único parafuso, não promove investimentos milionários, não movimenta outros setores, não gera empregos. Em geral, as únicas engrenagens que coloca em funcionamento são as engrenagens da Justiça. É um tipo de negócio que recebe diferentes nomes: elisão fiscal, planejamento tributário, gestão fiscal, entre outros. Movida a liminares, ações judiciais ou brechas existentes na legislação, se alimenta com o não-pagamento de impostos. Há de tudo nesse mercado ? bancas de direito tributário, grandes consultorias empresariais, escritórios de auditoria e contabilidade e até assessorias dirigidas por funcionários da própria Receita Federal. Não há dados consolidados sobre o tamanho desse mercado, mas alguns indicadores dão uma idéia das fortunas geradas por ele:
? Segundo a Receita Federal, todos os anos R$ 825 bilhões ficam livres da incidência de qualquer tipo de imposto. Uma parte significativa disso é resultado do trabalho dessa indústria. Estima-se que os contribuintes reclamam nos tribunais a devolução de R$ 150 bilhões de impostos federais e outros R$ 70 bilhões a R$ 80 bilhões em taxas estaduais e municipais. Desse total, advogados, contadores, consultores e outros profissionais do ramo receberiam uma remuneração média de 10%, ou seja, R$ 22 bilhões.
? Nos últimos 5 anos, a filial brasileira da KPMG, uma das maiores consultorias de gestão do mundo, recuperou para seus clientes R$ 3 bilhões em impostos pagos indevidamente.
? Em 10 anos de atuação, a Oliveira Neves e Associados, de São Paulo, tornou-se a maior banca de direito tributário, com uma carteira de 1.200 clientes e R$ 30 milhões de faturamento anual.
Essa indústria atua em diversas frentes. Algumas trabalham dentro dos limites estritos da lei ? buscam formas legais para que seus clientes paguem menos impostos, o chamado planejamento fiscal, ou recuperem aquilo que entregaram a mais para o Leão, atividade batizada de contencioso tributário. Aqui também nada há de ilegal.
No outro extremo, estão aquelas que vendem o que não podem entregar. Ou seja, é pura fraude. Em março deste ano, João Marcos Cosso, de Ribeirão Preto, teve sua prisão decretada. Motivo: ele teria falsificado uma carta de crédito de ICMS de R$ 722 mil. Até que a carta é bem feitinha, não fosse por um detalhe: o nome do signatário, o secretário da Fazenda de São Paulo, está errado. Em vez de Yoshiaki Nakano, aparece Shiguiaki Nakano. Um outro falsário foi mais cuidadoso com a grafia do nome de Cláudia de Oliveira, diretora-executiva de Administração Tributária, em uma carta de crédito de R$ 200 milhões. Só que há 5 anos o titular do posto é outra pessoa.
Há uma diferença abismal de casos como esses e a atividade de empresas que trabalham de acordo com a lei. Mas ambos prosperam graças à fertilidade de um mesmo terreno: a balbúrdia fiscal do País. Com mais de 50 impostos, guerras fiscais, alterações constantes e carga equivalente a 34% do PIB, a estrutura tributária do País é um prato cheio para essa atividade. ?Uma legislação complexa favorece a elisão e a sonegação, que navegam muito bem nas trevas?, diz Everardo Maciel, secretário da Receita Federal. ?Mas o que favorece mesmo a elisão é a falta de neutralidade do sistema tributário.? Segundo ele, as regras atuais abrem margem para os contribuintes escolherem opções de pagar menos impostos.
Como acontece em outros setores excessivamente regulamentados, a complexidade dessa teia cria um atraente mercado de trabalho para ex-membros do governo. ?É importante conhecer os mecanismos da Receita para atuar nesse setor?, diz Arthur de Biasi, funcionário aposentado da Receita Federal, onde trabalhou durante 22 anos. Hoje, dono de uma empresa de auditoria, De Biasi trabalha apenas com processos administrativos junto à Receita Federal. ?Não vamos aos tribunais?, diz ele. Por esse caminho, ele recuperou, de 1996 para cá, R$ 160 milhões pagos indevidamente ao Imposto de Renda. Outros R$ 160 milhões estão em processo de julgamento.
O mais famoso participante do grupo dos ?ex?, porém, é o ex-secretário da Receita Federal, Osires Lopes Filho. Quase 6 anos depois de deixar o posto, Lopes Filho possui um escritório cujo foco está no contencioso tributário. De sua sala decorada com quadros de motivos naturalistas e uma pequena escultura de um leão feita em madeira, ele comanda outros quatro advogados, entre eles dois filhos e sua mulher. Eclética, a carteira de clientes inclui empresas como United Airlines e políticos como o ex-senador Luiz Estevão.
Outro escritório de Brasília com atuação nesse mercado é o Marcial e Meneghetti Advogados Associados. Um dos nove sócios é o ex-subchefe do gabinete civil para assuntos jurídicos do governo Collor, Carlos Marcial. Nos processos do escritório na área tributária, não é incomum encontrar o nome da advogada Marília Maciel, outra das sócias. Nada estranho não fosse ela filha do próprio secretário da Receita, Everardo Maciel. Em uma ação sobre o Cofins, Marília, 28 anos, aparece como advogada e assina uma procuração. Dos 98 processos com seu nome que correm atualmente na seção judiciária do Distrito Federal, 16 referem-se a assuntos tributários. Marília, no entanto, não vê conflito de interesses. Por ser sócia do escritório, diz, seu nome aparece nas ações. Além disso, os processos são ?contra a União e não contra a Fazenda?. ?Eu trabalho na área de família e civil. Não lido com a área tributária?, nega ela, observada pelos oito outros sócios que também participaram da conversa com DINHEIRO. ?Marília não atua na área tributária?, diz Everardo Maciel. ?Ela é muito ética, não comenta nenhum assunto do trabalho comigo.?
A indústria da elisão possui representantes até mesmo no prédio onde Maciel, o pai, trabalha. Um deles é o ex-fiscal da Receita Federal em Goiânia, Antônio Luiz dos Santos Barros. Tempos atrás, Barros multou a Panarello, uma distribuidora de remédios, em R$ 110 milhões. Depois, pediu licença na Receita e assumiu a defesa da empresa que autuou. Barros trabalhava em conjunto com Leliana Maria Rolim Vieira, delegada da Receita Federal em Brasília. Com o codinome Marília, Leliana habituou-se a dar consultoria tributária em processos de empresas contra a própria Receita, contratada por empresas de auditoria como a Bianchessi e a Deloitte Touche Tohmatsu. Documento ao qual DINHEIRO teve acesso revela que Leliana recomendou ao Banco do Estado do Espírito Santo uma compensação indevida de Imposto de Renda, já que a margem de risco era pequena. Uma investigação da própria Receita descobriu a dupla jornada de trabalho de Leliana e sua turma. Hoje, afastada da função, espera decisão do ministro Pedro Malan a respeito de sua demissão. A Bianchessi e o banco negam relacionamento com Leliana.
A principal arma da Receita para evitar esses casos é fechar todas as portas que levem à elisão fiscal. Em 1997, especialistas em impostos descobriram o único paraíso fiscal no planeta com o qual o Brasil não tinha um acordo de cooperação que permitisse a taxação de investimentos: a Ilha da Madeira. A Receita tentou fechar acordos com o governo português a partir de então, mas não obteve sucesso até 9 de agosto deste ano, quando o acordo foi assinado. A parceria ainda depende do carimbo do Congresso.
O governo busca formas de inibir esse tipo de atividade. O secretário Everardo Maciel enviou para o Congresso um projeto de lei complementar para barrar a ação da turma da elisão fiscal. Especialistas acreditam que dificilmente ele terá total sucesso. ?O trabalho de planejamento tributário deve crescer nos próximos anos?, diz Inocêncio Henrique Prado, diretor da consultoria tributária da KPMG. ?As empresas estrangeiras que chegaram nos últimos anos trouxeram essa cultura para cá.? A empresa de Prado colheu frutos dessa expansão. A área tributária responde hoje por 30% do faturamento de US$ 25 milhões da KPMG no Brasil. O número de funcionários nessa atividade saltou de 70 para 120 nos últimos cinco anos. Nesse período, a recuperação de impostos para os clientes atingiu R$ 3 bilhões. A KPMG fica com 1% a 15% do dinheiro recuperado, dependendo do volume da ação. A fonte da recuperação nos tribunais poderá ir secando nos próximos anos. ?O governo passou a ser mais cuidadoso na elaboração das leis, e a Justiça tem sido mais dura com os contribuintes?, diz Prado. ?Quem trabalha apenas com contencioso ficará com um abacaxi na mão.?
Atualmente o filé mignon dessa indústria está nessa atividade. A trajetória do advogado Newton de Oliveira Neves é exemplar. Em 1990, quando trabalhava no departamento jurídico da Philip Morris, teve suas economias confiscadas pelo Plano Collor. Inconformado, foi à Justiça e tornou-se o primeiro brasileiro a obter a liberação do dinheiro. Deu entrevistas à Imprensa, o que levou diversas pessoas a procurá-lo para conhecer o caminho das pedras. Surgiram aí as primeiras propostas de trabalho. Hoje, a Oliveira Neves e Associados é uma das maiores bancas de advocacia do País, com 300 funcionários e faturamento de mais de R$ 30 milhões de reais por ano. Sua sede ocupa os 10 andares de um moderno prédio na região dos Jardins, em São Paulo, o ponto mais valorizado da cidade. Nos últimos 5 anos, sua equipe recuperou na Justiça R$ 3 bilhões para os clientes.
O crescimento espantoso deve-se à constante divulgação que Oliveira Neves faz de seu trabalho. Periodicamente ele promove seminários sobre planejamento tributário. Até mesmo um número 0800 foi criado para atender interessados. O marketing agressivo chamou a atenção do governo. A Procuradoria da República entrou com uma representação contra a banca no tribunal de ética da Ordem dos Advogados do Brasil. Motivo: a ?excessiva mercantilização da advocacia? que estaria ferindo o código de ética da profissão. A punição, em caso de condenação, pode ir de uma simples censura à suspensão profissional de 30 dias a 12 meses. O corregedor do tribunal de ética da OAB, Raul Haidar, não comenta o processo, embora confirme sua existência. Segundo ele, há outros processos no tribunal contra escritórios de direito tributário. Mas não concorda que haja uma indústria agindo nesse setor. ?Na verdade não uma indústria de liminares, como se convencionou dizer?, afirma ele. ?O que existe é uma indústria de leis mal feitas.?
Se os escritórios de advocacia e consultoria adoram mostrar o que fazem nesse terreno, os clientes preferem se esconder. DINHEIRO procurou 10 grandes empresas para falar sobre o assunto. Todas possuem um departamento de análise tributária. Nenhuma quis falar. O receio é de que elas se tornem alvo de uma devassa em suas contas por parte da Receita Federal. O temor é imenso. Um grupo de executivos da área, representando 33 grandes companhias, reúne-se periodicamente para discutir práticas de planejamento tributário. Embora tenha até estatutos e seja oficialmente constituído, as reuniões não são registradas em atas. ?Jamais colocaríamos no papel uma linha sequer sobre o assunto?, diz um dos participantes, que, como bom executivo da área, esconde-se no anonimato, mas não despreza uma só oportunidade de ganhar dinheiro com a elisão fiscal.