DINHEIRO ? A crise política do governo já chegou à economia. Quais são os riscos?
AFFONSO CELSO PASTORE
? Compare a economia de hoje à de três anos atrás e suponha que esta crise acontecesse três anos atrás. Os efeitos na economia, agora, já seriam muito maiores. Você tinha um déficit externo de mais de US$ 20 bilhões. Agora, há um superávit de US$ 12 bilhões. Isto faz uma enorme diferença. Além disso, a taxa de juros interna está extremamente alta em relação à taxas internacional, o que evita a fuga de capitais. Portanto, o efeito disso (da crise) no câmbio hoje é muito menor do que seria três anos atrás. A economia está mais forte para enfrentar a crise.

DINHEIRO ? Mesmo com isso, o que pode acontecer com a economia?
PASTORE
? Depende da magnitude e da persistência da crise. Se você tiver uma crise maior e mais persistente, vai ter efeito reais. Quais ninguém sabe.

DINHEIRO ? Gente influente no mercado, como Paulo Leme, do Goldman Sachs, alerta para o risco de o governo abrir os cofres para conter a crise. Isto preocupa?
PASTORE
? Existe uma oferta infinitamente elástica de populismo na América Latina, que deixa as pessoas com as barbas de molho. Começa pela Venezuela, com um lídimo representante do populismo (Hugo Chaves), definido como o cara que gasta sem saber de onde vem o recurso. E chega à Argentina, onde você encontra populismo, com o (presidente Néstor) Kirchner. O Brasil é latino-americano e, se na América Latina há este comportamento, aqui também pode haver. É claro que há medo aqui dentro. Este risco existe. Mas traz um custo.

DINHEIRO ? Qual é o custo?
PASTORE
? É você perder o controle da crise, como quase aconteceu em 2002. Se formos para uma política fiscal irresponsável que coloque em risco a dinâmica da dívida pública, aí o Brasil pode ir para default (inadimplência). Felizmente aconteceu 2002. O Palocci entendeu 2002. E explicou para o Lula. O Lula e o Palocci sabem que o custo de 2002 é alto. A percepção deste custo racionalmente minimiza a tentação do governo de ir para a solução populista.

DINHEIRO ? O senhor inclui Kirchner entre os populistas?
PASTORE
? Ele sabe que tem de ceder aos credores para poder obter os recursos do FMI e fechar suas contas. Isto é um custo político enorme para ele. Uma forma de pagá-lo é pegar os empresários argentinos e começar a brigar com o Brasil, que funciona como se fossem as Malvinas. Um inimigo comum que desvia a atenção lá para fora. Isto é uma forma de populismo.

DINHEIRO ? Gente do núcleo duro do governo começa a pedir a cabeça do Henrique Meirelles. Isso preocupa?
PASTORE
? Eu não sei se este núcleo é duro. Ele está pedindo ?Fora Meirelles? há muito tempo. O gozado é que ele não pede ?Fora (Romero) Jucá? (ministro da Previdência) nem ?Fora (José) Dirceu? (ministro da Casa Civil). E no fundo existe a suspeita de que possamos estar perto disso. Há vários núcleos no governo. Logo após as denúncias, o (presidente nacional do PT José) Genoíno saiu dizendo que são as elites que estão tentando desestabilizar o governo. É uma reação à extrema esquerda. O que nós queremos saber é se o presidente Lula vai manter a posição de estadista e ficar distante desse tipo de pressão ou não.

DINHEIRO ? E qual é o risco de acontecer o contrário e o BC radicalizar o aperto para mostrar firmeza?
PASTORE
? Isto aqui não é um jogo de macho ou de fêmea. Eu não vejo este Banco Central como um Banco Central machista, que tem que mostrar que pode mais do que os outros. Ele não endurece só para mostrar que está vigilante. Nós já temos sinais de desaquecimento da atividade econômica e tivemos uma valorização do real. No meu balanço de risco, não era necessário ter subido a taxa de juros na última reunião. Mas eu também não iria para o extremo de baixar a taxa de juros.

DINHEIRO ? Economistas respeitados, como José Alexandre Scheinkman, de Princeton, acham que é hora de baixar.
PASTORE
? Eu discordo. Acho que o Sheinkman é um brilhante economista, muito mais do que eu, mas acho que ele está errado nesta questão da política monetária que não é o campo dele. Você jamais entregaria o seu fêmur para o Adib Jatene operar, por mais que ele seja uma autoridade mundial em cardiologia. Você não pode baixar a taxa de juros enquanto está desinflando a sua economia. Mas você pode parar de subir a taxa de juros.

DINHEIRO ? O senhor já disse que teria parado de subir os juros dois meses atrás. O que o BC não está vendo?
PASTORE
? A desaceleração da atividade econômica era mais visível do que o Banco Central estava percebendo. Tem gente que é melhor para ouvir certos tipos de ruído do que outros. Eu acho que eu consigo ouvir o ruído da atividade econômica muito bem. Não sei se melhor ou pior que o Banco Central, mas a minha posição é divergente.

DINHEIRO ? Com a atual taxa de juros, o crescimento econômico deve ficar abaixo de 3%. Tivemos, então, um vôo de galinha em 2004?
PASTORE
? Os 5% do ano passado estão acima da taxa de crescimento sustentável de longo prazo. Nós só crescemos 5% porque absorvemos capacidade ociosa. O Brasil hoje pode crescer, de forma sustentável, 3,5% se tudo funcionar perfeitamente bem. A economia aqueceu demais no ano passado. Foi simplesmente um acidente derivado da recessão que existiu em 2003.

DINHEIRO ? Como é que se rompe este limite de 3,5%?
PASTORE
? Primeiro nós precisamos de estabilidade econômica. O risco Brasil ainda é dos maiores do mundo.

DINHEIRO ? Por quê?
PASTORE
? Nós estamos fazendo uma política fiscal austera e baixando a relação dívida-PIB, mas esta relação ainda é grande demais para um mercado emergente. A dívida pública do Chile é 7% do PIB. A do México está perto de 20% do PIB. Mas a do Brasil ainda está em 50%. Nós vamos ter que fazer um esforço muito grande para aumentar o superávit primário e reduzir a dívida.

DINHEIRO ? Não parece viável política nem socialmente aumentar o superávit primário.
PASTORE
? Ah, não dá? Então não dá para crescer. E olha que não tem milagre. Se não fizer o que tem que fazer, vai chorar sentado na beira da calçada durante décadas. Vai culpar o Banco Central. Dizer que os diretores do BC são gordos e ortodoxos. Gordos eles são, alguns. Mas não são ortodoxos como se diz. É muito mais fácil e politicamente correto se revoltar contra a taxa de juros do que atacar os pontos da política econômica do governo que tem que ser atacados.

DINHEIRO ? Por exemplo?
PASTORE
? O governo fez uma reforma da Previdência em seu primeiro ano. Foi aplaudido. Mas a regulamentação da reforma não foi aprovada ainda no Congresso. Portanto, não entrou em funcionamento. O gasto da Previdência continua sendo exatamente o que era.

DINHEIRO ? Esta também é uma área política e socialmente delicada.
PASTORE
? Não é barato para a sociedade aceitar um aumento da contribuição previdenciária. Não é barato para a sociedade aceitar um aumento na idade de aposentadoria. Cada indivíduo fica com um custo maior. Mas a sociedade como um todo, que vai ter uma redução mais rápida da relação dívida-PIB e a possibilidade de crescer mais depressa no futuro, ganha. Inclusive o indivíduo que pagou o custo de ter um benefício da previdência menor. O que os governos deveriam fazer é usar argumentos para convencer a sociedade disso.

DINHEIRO ? A idéia de usar a política fiscal no combate à inflação para tirar todo o peso das costas do BC é factível?
PASTORE
? Nenhum economista acha que pode fazer política monetária sem o devido respaldo da política fiscal. Agora, baixar a carga da política monetária agora, com esta política fiscal que está aí, não dá.

DINHEIRO ? Qual é a sua crítica em relação à atual meta de inflação?
PASTORE
? Eu não gosto da banda de 2 pontos (percentuais de margem, para cima ou para baixo). Eu prefiro a banda de 2,5 pontos, como era anteriormente. E a meta tem que ser entendida como todo o intervalo (entre o piso e o teto da banda). Na hora em que você fizer este ajuste, não precisa mudar a meta. Não tem que colocar trabalhador e empresário no Conselho Monetário para definir qual é a meta.

DINHEIRO ? O senhor é contra esta idéia?
PASTORE
? Absolutamente contra. Aliás, eu já fui presidente do Banco Central num Conselho Monetário que tinha 20 representantes. Simplesmente não podia existir política monetária.

DINHEIRO ? Então não há espaço para discutir o aumento da meta de inflação?
PASTORE
? Isto é uma proposição política. O senador Mercadante gosta muito de usar isso para dizer que está tentando fazer coisas boas. Mas na verdade não está tentando fazer coisas boas. E ele nem sabe que não está tentando fazer coisas boas. Toda vez que você sobe essas metas e desancora a inflação, a única coisa que você colhe é uma inflação permanentemente mais alta. E não há nenhuma evidência, em nenhum país do mundo, de aumento permanente da taxa de crescimento econômico.

DINHEIRO ? E o câmbio? A valorização do real não ameaça os superávits que hoje fortalecem a economia brasileira?
PASTORE
? Você não perde esta fortaleza tão fácil, não. O preço internacional de commodities está no alto histórico dos últimos 20 anos. Exportar commodities está altamente rentável. O câmbio não é capaz de parar essa exportação, que responde por quase metade dos US$ 9 bilhões por mês de vendas externas do Brasil. E a outra metade você não exporta só para a área do dólar. Exporta para várias outras áreas de várias outras moedas. Com isso eu não quero dizer que este câmbio não desacelera as exportações. Ele desacelera. Só que não produz o colapso das exportações. Você precisaria de um stress muito pior do que este para terminar com este ganho.