05/04/2006 - 7:00
Guido Mantega: “O Brasil precisa ter taxas de juros civilizadas”
Foi uma mudança de piloto em pleno vôo, com promessa de alteração de rota. Na manhã de segunda-feira 27, mal desembarcou no Aeroporto de Congonhas para cumprir uma longa agenda de reuniões em São Paulo, o presidente do BNDES, Guido Mantega, foi interceptado por um telefonema do presidente Lula. Carregando somente uma maleta de papéis e a roupa do corpo, Mantega tomou o primeiro avião para Brasília. Sozinho. Ao entrar no Palácio do Planalto, encontrou o presidente com semblante turvo, na iminência de demitir o ministro da Fazenda Antônio Palocci, o fiador da estabilidade econômica. Não houve debate entre Lula e seu velho conselheiro econômico, amigo de mais de 20 anos. Lula simplesmente convocou Mantega para o posto de ministro da Fazenda. Restou ao ex-ministro do Planejamento, de 56 anos, mandar um assessor comprar-lhe um terno escuro para a posse. Na terça-feira, o mercado abriu nervoso ? o dólar subiu 2% e o risco-país 5% – pressentindo as mudanças no topo da economia. Mantega, afinal, sempre foi crítico da política de juros praticada na gestão Palocci. Para acalmar o mercado, disposto a faturar algum na confusão, o presidente Lula avisou: ?Não estamos dispostos a fazer mágica em economia?. O novo ministro também vestiu o traje de bombeiro. ?Antes que me perguntem, comunico que não haverá mudanças na política econômica? prometeu. Logo em seguida, porém, tratou de garantir-se algum espaço de manobra. ?Mudei de cargo, mas não mudei de idéia?, afirmou. Mesmo assim, o mercado aquietou-se.
A banca na posse: Marcio Cypriano, do Bradesco, à esquerda, na posse de Mantega
Mas quais são, afinal, as idéias do professor Mantega? Formado em economia pela USP e doutorado sob orientação de Fernando Henrique Cardoso, em seus 15 livros de economia ? e um heterodoxo, Sexo e Poder, de 1979 ? o novo ministro alinha-se claramente entre os chamados desenvolvimentistas. Preocupa-se prioritariamente em acelerar as taxas de crescimento e retirar o País do atraso e da pobreza. No campo prático, foi o homem de finanças da prefeita Luiz Erundina, em São Paulo, onde conseguiu realizar uma gestão ao mesmo tempo austera e eficiente no atendimento à população. Levado à Esplanada por Lula em 2003, como ministro do Planejamento, debruçou-se sobre o orçamento (uma das suas especialidades profissionais) e pôs de pé o plano da Parcerias Público-Privadas. Considerado excelente, esse projeto nunca saiu do papel. Foi no BNDES, porém, que Mantega se destacou como administrador e soldou a confiança do presidente. Ele emprestou quase R$ 50 bilhões, 40% a mais do que o seu antecessor Carlos Lessa. ?Diziam que eu era só um acadêmico e se surpreenderam?, diz Mantega. Essa experiência no BNDES, onde desaguam os grandes projetos públicos e privados, deu-lhe uma visão privilegiada das entranhas da economia real e o aproximou do mundo da produção. Por isso, a sua chegada à Fazenda foi bem recebida pelo setor industrial. Os empresários esperam ver transformadas em atos as aspirações públicas de Mantega de reduzir a taxa de empréstimos do BNDES (a TJLP) e acelerar a queda da Selic, a taxa de juros fixada pelo Banco Central. ?O Brasil precisa de juros civilizados?, disse o novo ministro. Faz quase 12 anos que não se ouvia esse tipo de linguagem no Ministério da Fazenda.
Troca de guarda: O amigo de Lula recebe de Palocci o bastão da Fazenda. Para mudar
Mudou o ministro, mudaram as idéias na Fazenda e isso sublinha a transformação em curso no ambiente de Brasília. A economia já está mudando. Nos primeiro meses do ano, a execução fiscal aumentou drasticamente. Os gastos subiram 25% e o superávit primário está muito próximo da meta. Mantega vai fazer os 4,25% combinados; nem mais, nem menos. Palocci fazia 6% e queria comprometer o País com metas ainda mais duras, de longo prazo. Isso não vai mais ocorrer. O novo ministro descartou essa idéia assim como a outra proposição ultra-liberal de seu antecessor, a da redução unilateral de tarifas de importação, que criariam um choque competitivo. Na área da inflação, Mantega comprometeu-se com a meta de 4,5% do ano que vem, mas não deve ter a mesma obsessão pelo centro do alvo. Os homens que formarão sua equipe têm também um perfil distinto do time anterior, ainda que sejam profissionais do mercado. Carlos Kawall, que ocupava a diretoria financeira do BNDES, tomará o lugar de Joaquim Levy na secretaria do Tesouro. Ex-economista-chefe do Citibank, tem artigos publicados nos quais defende o fim dos títulos públicos indexados à Selic. Quer substituí-los por papéis do Tesouro a juros já fixados no lançamento. O ex-ministro Delfim Netto, que acompanhou muito de perto a transição na Fazenda, aposta que Mantega fará mais e melhor do que Palocci. ?É um sujeito treinado, austero, que vem sendo vítima de preconceito e de um terrorismo leviano de parte do mercado?, afirma o deputado.
Na noite de quinta-feira 30, havia no Palácio do Planalto um grande alívio em relação à troca na Fazenda. Avaliava-se que a reação do mercado fora ínfima e que tendia a desaparecer. Tendo em vista a magnitude da mudança, e a importância de Palocci no esquema de poder, as coisas não poderiam estar melhores. ?Tivemos um custo elevado, mas a página está sendo virada?, avaliava uma autoridade com sala no Planalto. Ali, Mantega perfila-se agora ao lado do ministro Luiz Dulci e do assessor Marco Aurélio Garcia como um dos auxiliares mais íntimos do presidente. Os dois conversam informalmente e o presidente tem grande confiança em seu ex-assessor econômico, embora sejam pessoas muito diferentes. Mantega é tímido, enquanto Lula é expansivo. Mantega vem de família rica, que lhe deixou uma fortuna em imóveis, enquanto Lula é de origem muito humilde. Espera-se no Palácio que o novo ministro conduza essencialmente a mesma política do seu antecessor, ainda que à maneira dele. Qual é a margem de autonomia que esse situação reserva à Mantega? Difícil antecipar. No Banco Central, Henrique Meirelles já se firmou junto ao presidente e ao mercado como guardião da ortodoxia. Mantega assumiu reconhecendo a autonomia de fato do BC. O tempo que resta também é pouco: o mandato de Lula termina em dezembro e a proximidade das eleições não recomenda aventuras. Os olhos do mercado, na verdade, voltam-se para o segundo mandato ? na possibilidade de que Lula vença o pleito. Nesse caso, Mantega poderia conduzir com mais desenvoltura uma política que combinasse o seu apego à austeridade administrativa pelo anseio de fazer o País crescer mais rápido. ?Pode haver uma inflexão à esquerda?, cogita o economista Marcelo Mesquita, do banco UBS. Visto com serenidade, não seria dramático se o Brasil, depois de 12 anos de experimentação liberal, com resultados discutíveis, considerasse aplicar políticas pró-crescimento, como fazem os modernos e bem-sucedidos países emergentes da Ásia. Elevado à função por um acidente da história, o novo ministro da Fazenda pode ser o homem certo na hora certa.
O DECÁLOGO DE MANTEGA
O que o novo ministro pretende fazer no comando da economia
1 ? CRESCIMENTO: o novo ministro promete medidas para levar o crescimento a 4,5% em 2006. Os números do Banco Central oscilam entre 3,5% e 4%. Uma alternativa é a redução focada de impostos.
2 ? JUROS: Mantega pretende convencer o Banco Central a reduzir a taxa Selic gradativamente, até o patamar de juros reais de 9,5% ao ano em dezembro. ?O Brasil tem de ter taxas de juros civilizadas. ?
3 ? TJLP: a taxa usada para empréstimos do BNDES deverá ser reduzida. Hoje ela é de 9%. Mantega quer levá-la a 7%. Defendia essa mudança quando estava no BNDES. ?Mudei de cargo, mas não de opinião?.
4 ? SUPERÁVIT: Mantega pretende liberar gastos ao longo de todo o ano, sem represar recursos. Com isso, irá cumprir o superávit de 4,25% mês a mês. Mas ele jamais será maior, como queria Palocci. ?Não vejo razão de fazer um esforço fiscal adicional?.
5 ? CÂMBIO: fica mantido o regime de câmbio flutuante. Mas Mantega tomará medidas pontuais e discretas junto ao mercado para forçar uma pequena desvalorização do real. ?Uma taxa de juros menor pode ajustar o câmbio?.
6 ? ABERTURA: Mantega praticamente sepultou o projeto de redução de alíquotas que vinha sendo gestado no Ministério da Fazenda, na era Palocci, para estimular o aumento das importações. ?O câmbio atual já é um estímulo natural às importações?.
7 ? METAS DE INFLAÇÃO: no BNDES, Mantega defendia uma meta mais frouxa, para reduzir mais rápido os juros. Agora deve se comprometer com uma meta de 4,5% também para 2007, mas dirá que o BC não precisa acertar o centro. ?Podemos ousar.?
8 ? METAS PARA O PIB: na próxima reunião do Conselho Monetário Nacional, ele irá propor metas de crescimento de 5% para 2007. Desta forma, o BC seria obrigado a cuidar tanto da moeda quanto da produção. ?Vamos iniciar um ciclo de desenvolvimento sustentável?.
9 ? INTERVENÇÃO: Mantega defende um papel mais ativo do Estado em investimentos de infra-estrutura. ?O mercado não resolve tudo?.
10 ? AJUSTE FISCAL: O ex-ministro Palocci queria amarrar uma série de metas fiscais até 2016. Mantega descartou. ?Sabemos que a mola mestra do crescimento é o investimento público e privado. Temos que gerar condições para isso?.