27/01/2015 - 18:00
Aos 75 anos, o ex-presidente do Banco Central (BC) Affonso Celso Pastore é um dos economistas mais respeitados do País. Sua avaliação da situação da economia está longe de ser otimista. Para ele, os ajustes iniciados por Joaquim Levy em 2015 devem se prolongar até 2016 e há uma grande necessidade de melhorar a gestão pública para estimular os investimentos e elevar a produtividade da economia. Para contribuir com o debate, Pastore está lançando o livro Inflação e crises – o papel da moeda (Elsevier, 328 páginas, R$ 69,90), em que analisa a inflação, as mudanças institucionais e as políticas econômicas dos últimos 50 anos, com ênfase no campo monetário. Ele falou com a DINHEIRO:
DINHEIRO – Por que a inflação permanece elevada se a economia cresce tão pouco?
AFFONSO CELSO PASTORE – Porque fizemos bobagens a partir de 2010. O PIB cresceu 7,5%, a economia estava acima do pleno emprego, a inflação estava subindo, mas, por conta da eleição, o governo pisou no acelerador. O BC deveria ter elevado os juros no fim do ano, mas não fez isso. Em 2011, para piorar, o novo governo transformou os juros em um objetivo de política econômica e baixou a taxa real para 2% ao ano. Desde então, a inflação saiu do controle e permaneceu descontrolada até hoje. Isso se chama erro de política monetária. Não bastasse, a partir de 2012 adotamos políticas fiscais expansionistas, mudando o perfil da inflação.
DINHEIRO – Como a inflação mudou? E como reduzi-la?
PASTORE – Nossa inflação agora é uma inflação clássica, que vem da conjugação entre política fiscal expansionista e política monetária extremamente passiva. Para baixar essa inflação clássica temos de usar os remédios clássicos de política fiscal e política monetária, em vez de tentar fixar os preços da gasolina. É preciso elevar os juros e praticar uma política fiscal muito mais austera. Esses remédios costumam produzir o resultado clássico de desacelerar o nível de atividade. É o famoso pé no freio, que vai acontecer de qualquer maneira. Já está dado, não há o que discutir.
DINHEIRO – O ministro da Fazenda, Joaquim Levy, terá apoio político para isso?
PASTORE – Quando o Joaquim Levy foi convidado para o ministério, ele certamente, não falou “Oba! Vou ser ministro!”, ligou para avisar a mulher e depois chamou os amigos para tomar um porre (risos). Ele deve ter sentado com a presidenta e apresentado um diagnóstico. As necessidades são claras, é preciso melhorar a situação fiscal. A questão é qual o caminho para isso, quanto será corte de gastos, quanto será aumento de impostos. Ao fim dessa conversa, a presidenta deve ter garantido a ele o espaço para fazer o que é preciso. E vamos ver o que acontece.
DINHEIRO – Qual será o impacto sobre a economia real?
PASTORE – Prefiro não fazer nenhuma previsão numérica, pois há vários elementos imponderáveis, como a oferta de energia. Mas está claro que em 2015 teremos uma contração do PIB em relação a 2014. A economia real vai se contrair. Com isso, a inflação cai e, se o governo não fizer mais nenhuma bobagem na política fiscal e na política monetária, a economia volta a crescer com uma inflação mais baixa. Mas não é para já. Esse ajuste vai tomar todo este ano e um pedaço de 2016.
DINHEIRO – Por que a inflação vai demorar a cair?
PASTORE – Há uma grande correção a fazer nos preços administrados, isso sem falar na variação do dólar. A experiência mostra que a cada 10% de alta da taxa de câmbio temos de 0,5 a 0,7 ponto percentual a mais no IPCA, e essa correção demora seis ou sete meses. O dólar saiu de R$ 2,20 e parece estar se estabilizando em R$ 2,60. São quase 20% de aumento. Pensando na estimativa mais otimista, é um ponto percentual a mais de inflação no ano.
DINHEIRO – O Brasil tem deficiências bem conhecidas: regulação excessiva na economia, produtividade baixa. Isso muda?
PASTORE – Muda, e por um motivo inescapável. Quando me formei, anos atrás, a população brasileira crescia 2,5% ao ano. Agora cresce menos de 1%, e deve crescer zero em meados da década de 2020. Outra coisa, a população agora é eminentemente urbana. Basta tentar dirigir pelas ruas de São Paulo para perceber isso. Então, não dá mais para crescer com base na absorção de mão de obra barata do campo. Temos de elevar a produtividade da economia.
DINHEIRO – Como fazer isso?
PASTORE – Temos três grandes vetores. Um deles é melhorar a gestão e a governança das políticas públicas. Fazer bem- feito, e não fazer a olho. Depois é preciso investir mais em capital físico, aumentar a densidade de capital por trabalhador, porque assim cada pessoa empregada produz mais. Terceiro, e tão importante quanto, é preciso investir mais em capital humano. Saúde, educação, treinamento. Isso leva não só a um aumento de produtividade como também a um aumento de renda, porque o trabalhador qualificado ganha mais.
DINHEIRO – Qual o papel do governo?
PASTORE – As políticas públicas têm de ter governança e também têm de gerar um incentivo para investir. Falta infraestrutura e isso prejudica o setor privado, que não investe porque o custo é alto. Não há dinheiro público? Faz com o setor privado, seja daqui, seja de fora. Esse foi o caminho seguido por todos os países que cresceram.
DINHEIRO – E os incentivos e políticas intervencionistas, como a política industrial? O ex-ministro da Fazenda Pedro Malan dizia que a melhor política industrial era não ter política industrial…
PASTORE – Concordo com 99% do que o ex-ministro Malan diz, mas nesse caso faço uma ressalva. O governo pode perfeitamente solucionar uma distorção de mercado com uma intervenção, um subsídio ou uma isenção fiscal, desde que seja com transparência e com critérios. Não há problema em ter uma política industrial bem-feita. Mas, para isso, o País precisa responder a algumas perguntas, como, por exemplo, se deseja ou não mais capital estrangeiro para favorecer o crescimento da indústria. Supondo-se que a resposta seja sim, é preciso perguntar qual capital estrangeiro a gente quer: o que vem só para explorar o mercado interno ou o que vem para transformar o Brasil em uma base de exportação.
DINHEIRO – Qual é um exemplo de boa política?
PASTORE – No Brasil, infelizmente, não temos exemplos de política industrial bem-feita. Os bons exemplos vêm de fora. Gosto do caso da Coreia do Sul. Lá, o governo é extremamente criterioso na concessão de incentivos ao capital estrangeiro. Para conseguir um incentivo, a empresa que pretende se instalar tem de provar que vai elevar as exportações. Ao exportar mais, a Coreia aumenta a corrente de comércio, ganha moeda forte e pode selecionar a importação que quer. O país cresce como um todo.
DINHEIRO – Por que isso não ocorre aqui?
PASTORE – Vou explicar com um exemplo. No Brasil, temos um enorme orgulho da nossa indústria automobilística. Ela tem capacidade de produzir seis milhões de automóveis por ano, mas está produzindo apenas três milhões. Há alguns anos, tínhamos capacidade de produzir menos de três milhões e a usávamos totalmente. O que houve? Os estímulos que dobraram a capacidade instalada atraíram montadoras. Agora, temos 17 delas. A BMW, por exemplo, instalou uma fábrica para produzir apenas 16 mil unidades por ano. Isso ocorre porque os incentivos estão errados.
DINHEIRO – Como assim?
PASTORE – Ao estabelecer uma política industrial, o governo pode tributar ou isentar os insumos importados. Da mesma forma, pode tributar ou isentar os produtos acabados. O que foi feito? O governo baixou os tributos dos insumos e elevou os tributos dos produtos acabados. Ou seja, ele estimula que a empresa importe insumos, como vidro, motor, roda, e monte o carro aqui. Em economia internacional, há o conceito de tarifa efetiva, que considera a vantagem tributária concedida na importação do insumo que você usa, e também a alíquota na importação do produto acabado. Em alguns casos, há uma barreira protetora de 60% a até 100% para o carro produzido aqui. Por isso, muitas montadoras instalaram fábricas buscando explorar não o mercado, mas operar uma vantagem fiscal. Isso é lícito, é legal, mas não é a melhor estratégia para o País. O quanto isso eleva a produtividade da economia brasileira? Porcaria nenhuma, para fugirmos do palavrão.
DINHEIRO – Essas políticas transformam o empresário em rentista?
PASTORE – Vamos falar “rent seeker”, porque em inglês fica mais elegante. O Brasil não pode ter esse grau de proteção efetiva. Temos condições de abrigar uma belíssima indústria automobilística: são 200 milhões de habitantes, um grande mercado interno. Só que é preciso retirar essas distorções. Não faz sentido a BMW instalar uma fábrica para produzir apenas 16 mil carros. A questão é que, para quem toma decisões no governo, anunciar que implantou uma fábrica da BMW e gerou empregos na indústria pega bem. Não por acaso, os representantes do setor automotivo vão conversar com as autoridades em Brasília dia sim, outro também. Então, vamos incentivar a produção e a exportação, seja de veículos mais simples, seja de autopeças ou mesmo de aço, e vamos importar BMW.
DINHEIRO – É um diagnóstico quase óbvio. Por que tanta dificuldade para pôr isso em prática?
PASTORE – É você quem está dizendo que é um diagnóstico óbvio. Não é óbvio. Não é o diagnóstico da presidenta Dilma. O crescimento, para ela, é aumentar a demanda. Estimular o investimento, para ela, é abaixar os juros para soltar o espírito animal dos empresários. Investir em infraestrutura passou a ser um dogma religioso, o de que a taxa de retorno não podia ser maior do que 7%. Aí, coloca-se o BNDES para subsidiar a taxa, usando dinheiro público, explode o lado fiscal e turbina a inflação. Só que há gente como eu, que discorda, escreve livro e convida ao debate.
DINHEIRO – Essa tese foi referendada pelas urnas…
PASTORE – Foi referendada pelas urnas com uma margem curta e com base em estelionato eleitoral. Um dia, muda.