O conceito equivocado de que “aquilo que é público não é de ninguém”, transmitido de pai para filho há gerações no Brasil, alimenta a corrupção em uma escala incalculável, a ponto de corroer padrões imutáveis de moral e ética. Soma-se a isso a impunidade, outro câncer impregnado na permissiva sociedade brasileira. Nos Estados Unidos, desde 1996, a lei trata o corrupto e o corruptor da mesma forma. Assim, aquele cafezinho generoso para liberar contratos, facilitar licenças e obter informações sigilosas ganhou status de crime federal inafiançável. Deu certo. Na China, casos de corrupção são solucionados em praça pública, com um tiro certeiro na moleira. 

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Renata Cavas, gerente da Rufolo Serviços Técnicos e Construções, afirma que pagar propina

para obter benefícios em contratos públicos é a “ética de mercado”.

 

Também dá certo, mas não cheguemos a tamanha simplificação. No domingo 18, reportagem do programa Fantástico, da TV Globo, revelou um dos mais revoltantes casos explícitos de compra de licitações e desvio de verbas públicas da história do País. As imagens mostram corruptores, empresários e seus representantes oferecendo dinheiro para ganhar concorrências num hospital federal do Rio de Janeiro. Curiosamente, em vários momentos, durante os encontros, os corruptores evocam princípios de ética para estabelecer cláusulas de seus acordos. Um deles diz: “Isso eu ensino para meus filhos. Eu protejo meu fornecedor, meu fornecedor me protege.” Bom, ninguém escolhe o pai que tem. 

 

Em outro diálogo, uma funcionária corrupta de uma empresa carioca afirma: “É a ética do mercado”, ao se referir às comissões pagas aos gestores de órgãos públicos. Essa ética, desconhecida pela grande maioria da população decente, deve existir apenas no mercado em  atua essa quadrilha, um meio poluído pela corrupção endêmica, em que pessoas compram as outras como se serviços de saúde pública ou contratos entre governo e fornecedores fossem DVDs piratas na barraca da esquina. Mais do que a tentativa de levar vantagem e criar uma nova definição para a ética, o que choca a opinião pública é a serenidade e destreza com que os corruptos agem. 

 

São bons no que fazem porque estão acostumados a fazer. A partir de abril, eles poderão ser obrigados a arrumar outra maneira de ganhar dinheiro fácil. Um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados, apresentado pelo deputado Carlos Zarattini (PT-SP), prevê punições idênticas para as empresas que praticarem suborno, além da obrigatoriedade de ressarcimento dos recursos desviados. Batizada de Lei Anticorrupção (PL 6826/10), a ser votada em abril, a iniciativa é inédita no País. “As empresas têm responsabilidade em toda essa questão da corrupção no Brasil”, diz Zarattini. “Se não pagassem, não haveria corrupção.” 

 

O que se viu na tevê é apenas uma parte da podridão dos bastidores da política e de certas empresas, mas é um arsenal de razões suficiente para iniciar um amplo movimento em defesa da decência e da governabilidade do Brasil. Corruptos e corruptores não são fantasmas. Eles têm nome e sobrenome, documento de identidade e endereço fixo. São ladrões de terno e gravata, executivos de empresas e gestores públicos, que poderiam ser identificados e processados. Se a Lei Anticorrupção for aprovada, e corruptores e corrompidos forem condenados a penas condizentes, pode ser que comecemos a restaurar a confiança das relações entre governo e empresas. Pode ser um começo.