Um: os investimentos estrangeiros em países asiáticos como Coréia do Sul, Cingapura e Malásia estão secando ano a ano. A culpa é da China que, como um buraco negro, tem sugado a maior fatia dos recursos do capital internacional ? só em 2002 US$ 50 bilhões entraram no país.

Dois: o mundo vive sob o fantasma da deflação e de suas conseqüências nos balanços das grandes corporações. O responsável? A China, que devido à enorme capacidade de produção tem reduzido os preços das mercadorias dentro e fora de seu território ? nos últimos três anos, o país registrou deflação, segundo analistas internacionais.

Três: o mundo pode mergulhar mais fundo na recessão em que já se encontra. Basta que o crescimento chinês sofra uma interrupção brusca, já que o país detém 5% do comércio mundial.

Há fatos e mitos em todos esses cenários. É verdade que a China já tem porte econômico capaz de provocar ondas de abalos ou euforia nos mercados mundiais. Mas, com um PIB de cerca de US$ 1,3 trilhão, ainda não possui capacidade suficiente para, sozinha, levar o planeta a uma recessão ou a um período de prosperidade.

O que ninguém duvida é que a abertura chinesa ao mercado global é o mais importante fenômeno da economia mundial das últimas décadas. Nos anos 70, esse papel pertenceu ao Japão. Na década seguinte, foi a vez dos tigres asiáticos. Ao longo dos anos 90, os Estados Unidos recuperaram a posição com uma impressionante sucessão anual de índices de crescimento. Agora, na aurora do século 21, a China parece monopolizar o fascínio e as preocupações dos investidores internacionais. Sim, preocupações. Porque ao lado da indiscutível pujança econômica, analistas e executivos estrangeiros em Xangai e Pequim começam a colocar algumas dúvidas que rondam suas cabeças. Até onde os espantosos índices de expansão são reais? Por quanto tempo serão mantidos? Quando a massa populacional de 1,2 bilhão de pessoas se transformará num mercado consumidor?

De qualquer forma, a China construiu uma economia vigorosa . A balança comercial tem superávit de US$ 37 bilhões e as reservas atingem US$ 260 bilhões. Mas a China vista de perto é muito mais complexa do que revelam as estatísticas triunfantes. As dúvidas surgem principalmente em relação às taxas de crescimento. A cada ano desde o início da década passada, a China dá saltos de 7% a 10%, mas o consumo de energia, indicador clássico de medição do desenvolvimento, não acompanha nem de perto esses porcentuais. Mais: cada província colhe os dados referentes ao desempenho da economia de sua região e os remete a um órgão central, que os consolida sem qualquer checagem. Na estrutura de poder do partido, o crescimento econômico é um critério fundamental para a promoção de dirigentes. ?Então, eles têm interesse em inflar os números?, diz um diplomata brasileiro. A piada que circula em Pequim é que o ideal seria dividir por dois os indicadores positivos e multiplicar por dois os negativos. Assim, o crescimento ficaria por volta de 4% ao ano. E o índice de desemprego em 8%.

Nada disso invalida a importância da China para empresas com pretensões de atuação global. A multidão de 1,2 bilhão de habitantes sequer possui as necessidades básicas atendidas, o que gera oportunidades de negócios para companhias de todos os setores e tamanhos. A cada ano, por menor que seja o crescimento, as portas do consumo se abrem para dezenas de milhões de pessoas por ano. Observe o que aconteceu com as vendas de carros. Há cerca de cinco anos, o governo liberou a aquisição de automóveis para os chineses ? até ali só empresas tinham essa permissão. Foi uma explosão. Em 2002, as vendas cresceram 50% em relação ao ano anterior e somaram 1,1 milhão de unidades. As grandes companhias do setor estão por lá. Neste sábado 18 a Ford lança seu primeiro modelo fabricado na China, o Fiesta. A empresa americana pode estar atrasada. ?A competição está muito intensa e a entrada da Ford ocorre muito tarde?, diz Zhang Xin, analista da Guotai Junan Securities. A disparada nas vendas nesse setor transformou o trânsito de grandes centros como Xangai em um caos, onde carros e bicicletas têm uma convivência conflituosa. A Prefeitura de Xangai, por exemplo, passou a promover leilões de venda de novas licenças, como forma de limitar a expansão.

Duas Chinas. Mesmo assim, nem todas as empresas estão ganhando dinheiro. Segundo levantamento da consultoria CS, metade das companhias recém-chegadas ao país não atingiu nos primeiros três anos os resultados previstos. A dúvida é: quando isso acontecerá? ?A filosofia da abertura comercial da China diz: deixe algumas pessoas se tornarem ricas primeiro que, com o tempo, todos os chineses ficarão mais ricos?, afirma o empresário Zhang Guo Qiang, dono da Shanghai Good Chemical Tecnology. O problema é que a primeira parte dessa filosofia chinesa parece ser muito mais rápida do que a segunda. Um passeio mais atento pelas ruas de Xangai, a mais aberta e pujante cidade do país, revela as diferenças entre as duas Chinas. Nos últimos 15 anos, bairros inteiros foram varridos do mapa. No lugar, surgiram viadutos intermináveis que cortam a cidade de ponta a ponta e avenidas largas iluminadas por anúncios de multinacionais como Motorola e McDonald?s, onde antes brilhavam cartazes em homenagem a Mao Tsé-tung. Ao longo dessas vias, erguem-se alguns dos mais altos e imponentes edifícios da Ásia, com design arrojado e futurista. Nas calçadas lotadas de gente, jovens desfilam com roupas da Gap (legítimas ou não) e executivos vestem ternos Giorgio Armani e gravatas Hermès (legítimas ou não). As tradicionais túnicas, imortalizadas por Mao, hoje só são encontradas em uma ou
outra loja de lembranças para turistas. Mas nas travessas dessas grandes artérias sobrevive a China de 50 anos atrás. Há poucos metros da Pearl Tower, cartão postal da cidade, vielas estreitas abrigam casarões deteriorados pela falta de conservação e transformados em cortiços pela superlotação. São ladeados por lojinhas minúsculas atulhadas de objetos expostos sem qualquer organização. O hábito de almoçar sentados em cadeiras na calçada permanece entre eles. Cenas de pobreza são ainda mais comuns nas áreas rurais, onde a riqueza proporcionada pela abertura econômica ainda não chegou. A renda per capita de US$ 910 em 2001 deverá subir este ano para US$ 1,05 mil este ano, mas continua distante da de outros países da região.

O último congresso do Partido Comunista mexeu com essa questão. Em um de seus discursos, Jiang Zemin, homem forte do partido e, por tabela, do país, conclamou todos os ?camaradas? a incentivar o crescimento do ?grupo de renda média? ? em outros países isso seria chamado de classe média, mas na China as classes desapareceram oficialmente desde a Revolução de 1949. O fortalecimento desse segmento seria um passo decisivo para atingir a meta de dobrar o PIB até 2020. É difícil medir o tamanho desse pedaço da população. Lu Xu Exi, da Academia Chinesa de Ciências Sociais, estima que 18% encaixam-se nessa classificação, cerca de 200 milhões de pessoas. Em 2020, se os planos do governo derem certo, o porcentual pode subir para 38%.

Para chegar lá, Huo Jintao, ungido no congresso de novembro como secretário-geral do Partido, terá desafios tão grandes como o país que ele passou a comandar. Um deles é sanear o sistema financeiro, que, segundo agências de análise de risco, carrega créditos podres equivalentes a 20% do PIB. Outro desafio diz respeito a uma equação perversa do ponto de vista social e econômico. Enquanto dois terços da população vivem nas áreas rurais, apenas um terço do PIB é gerado nessas regiões ? ou seja, um quadro de cidades ricas e campo pobre. Em Xangai a renda per capita supera US$ 3 mil anuais. Já na província de Guizhou, no interior, não ultrapassa US$ 500. Há, é óbvio, todos os estímulos para o êxodo rural. A migração só não acontece porque o governo segura ? e só segura porque é uma ditadura. Aí entra o terceiro desafio. Com o crescimento da classe média e a abertura do país, em algum momento, calculam especialistas, surgirão pressões por liberdades políticas. ?A China tem uma longa tradição autocrática?, analisa um diplomata brasileiro. ?Mas os acontecimentos da Praça da Paz em 1989 mostram que as coisas podem mudar.? Segundo ele, o Partido Comunista aposta que a população aceite a prosperidade econômica em troca da liberdade política. ?O sonho do governo é promover a perestroika sem a glasnost?, diz.

A blindagem econômica contra os riscos políticos inclui um aproximação pragmática com Taiwan e Hong Kong. Sob o lema ?dois sistemas, um só país?, Pequim procura criar uma integração entre as três economias, estimulando empresas de seus vizinhos a desembarcarem em seu território. Juntas, as economias do trio, batizado de Greater China, superariam a do Japão e só perderiam para um país, os Estados Unidos, e um bloco, a União Européia. Os instrumentos para a sedução das companhias dos vizinhos são os mesmos utilizados nos últimos anos: incentivos fiscais, doações de terrenos, mão-de-obra barata e (sempre!) o potencial do mercado de consumo. Esse conjunto foi responsável pelo ingresso de US$ 500 bilhões em investimentos diretos em duas décadas. São números que, sem dúvida, colocam a China como um ator de primeira linha na economia global, que jamais poderá ser ignorada por qualquer empresa ou país.