No dia seguinte ao Natal, há três ou quatro dias, portanto – a angulação imprecisa tem a ver com a experiência do usuário em ambientes digitais, lugares em que consumimos conteúdos velhos e não necessariamente quando foram postados –, o economista de alta patente André Lara Resende publicou um artigo no Valor Econômico que é o tal de “recado a todo mundo”: políticos, economistas de qualquer matiz, agentes do mercado, formadores de opinião e neófitos que vão replicar o texto em suas redes sociais. Como sou reducionista, sempre buscarei a mensagem seminal. Por esse prisma, o autor afirma que o BC mantém juro elevado de forma desnecessária. Estou longe de querer desconstruir um cara que é doutor em sua especialidade. Sou apenas praticante (por força da profissão) e estudioso (por força da outra profissão) de narrativas. E acredito que o – sensacional e oportuno – recado dele está mais no que não foi dito do que naquilo que foi dito. Fatiarei as ideias em quatro pontos para tentar dar entendimento a quem não puder acessar o artigo completo.

  1. Dívida

Ao tratar da dívida em relação ao PIB, medida que o mercado usa sim como fator de suposta preocupação apocalíptica, o autor diz que estava em torno de 75% do PIB (R$ 5,5 trilhões) em outubro, mas que se dela subtraíssemos o dinheiro em caixa com reservas internacionais cairia para 50%. “Embora seja evidente que o dinheiro em caixa deva ser deduzido da dívida bruta para se chegar à sustentabilidade do endividamento de qualquer entidade, os profetas do abismo fiscal conseguiram tornar a dívida bruta a referência para a sua sustentabilidade”, escreveu.

Então… Talvez a afirmação não seja inteiramente verdade. Ou tão simplista assim. Pense em dois tomadores de crédito, um com certa reserva disponível e outro com certa reserva já vinculada hipoteticamente a outro compromisso, e tente imaginar como um banco trataria ambos na hora em que pedissem dinheiro. Há muito mais sutilezas e dinâmicas envolvidas. O simples fato de a reserva entrar no abatimento do porcentual da dívida, como ele sugere, poderia ser lido como “xi, o Brasil vai usar as reservas”, mesmo que isso não se tornasse verdade. E o juro ficaria ainda mais pressionado. Porque a necessidade de o Estado ‘fazer’ dinheiro pode ser maior em termos de prazo do que a disposição de compradores aceitarem juro menor. A economia é muitas vezes movida por engrenagens aleatórias. Pelo menos assim pensam os economistas comportamentais.

Cito um exemplo brasileiro de que não se trata de ciência dura. Aqui, negros têm mais dificuldade de acesso ao crédito do que brancos. Pelo único motivo de serem negros. Pesquisa do Sebrae com a FGV, de onde vem Lara Resende, mostra que praticamente metade dos empresários brasileiros requisitou empréstimos durante a pandemia – negros (51%) e brancos (49%). A recusa de conceder dinheiro pelas instituições financeiras foi de 34% para os brancos e 47% para os negros. Uma baita distância entre um terço e metade. Baseada em ciência? Não.

Por considerar o lado comportamental da economia, eu nunca compro a construção da mensagem ‘pode-fazer-que-vai-dar-certo’. O que ele afirma no artigo não tem garantia alguma de constatação definitiva. E para ser justo, nem o seu contrário. Pode acontecer, ou pode não acontecer. Por isso, deixar as reservas fora da conta igualmente não é algo bom ou ruim per se. Até porque as reservas não têm mais crescido, o que não iria aliviar muito no médio prazo. Lara Resende acrescenta que existem países em que a dívida supera 100% ou mesmo dobra em relação ao PIB. Problema: não cita quais. Provavelmente, nenhum de economia relevante que tenha renda per capita como a nossa, nem com população tão inadimplente quanto a nossa, e muito menos tão desigual quanto o nosso.

  1. Custo da Dívida x Custo da PEC

Num segundo momento de seu artigo, André Lara Resende fala com razão de que o custo médio da dívida saltou de 7,15% em 2020 para 10,80% agora, o que chega a 3,65% do PIB neste interminável ano de 2022. E que isso é muito superior aos 2,20% do PIB da PEC da Gastança (“como é chamada pela Folha de S.Paulo”) ou PEC do Estouro (“pela CNN”). Em termos nominais, de dinheiro real, a distância entre 2,20% e 3,65% do PIB é gigante. E boa parte do estouro de R$ 169 bilhões, ele escreve, é destinado ao Bolsa Família, “programa assistencialista que tem apoio quase unânime no país”.

Fato. Há um trauma terrível e uma urgência insuperável na dívida com os brasileiros mais famélicos e extremados de nossa desigualdade. O argumento dele, no entanto, está no limite de um Reductio ad Hitlerum: afinal, quem há de ser contra dinheiro aos miseráveis? O ponto, que o economista preferiu não abordar, é que pode se buscar esse dinheiro de diversas outras formas – aumentando tributação de grandes fortunas, por exemplo; ou acabando com desonerações aleatórias a inúmeros setores produtivos; ou até mesmo colocando em discussão o aumento que o Judiciário acaba de ser presenteado, e virará cascata em todo o funcionalismo, em especial para suas elites. Poderia, principalmente, falar que seria possível resolver a m.r.d. toda de uma vez com uma efetiva Reforma Administrativa. Do jeito que ficou é defender o tático em detrimento do estratégico.

Há outro agravante nesse trecho do artigo: quando ele diz que os gastos previstos na PEC irão recompor também recursos para “saúde, educação, cultura, ciência e tecnologia”. Outro Reductio ad Hitlerum. Meu Deus! Quem além de negacionistas e terraplanistas haverá de ser contra? Só que ele parece esquecer de desvios criminosos de dinheiro na saúde (dê um Google qualquer) ou na educação (dê um Google em kits robóticas/notebooks Fundeb e FNDE), isso para não tratar da transferência imoral e desproporcional de dindim ao ensino superior, particularmente para instituições público-gratuitas que abrigam e formam (em especial nos cursos relevantes) quem sai de escolas privadas. A discussão entre os especialistas dessas áreas está mais em ‘como’ o dinheiro é usado do que no ‘quanto’ existe de dinheiro. Até porque nosso Parlamento é quase invariavelmente tigrão nas causas particulares e tchutchuca nas causas públicas, e sempre ávido para cuidar do dinheiro da saúde e da educação.

  1. Inflação

Quando trata da inflação, o autor defende que vivemos um mundo em que a inflação não é de demanda. “Por isso, [ela] aqui cedeu com a redução dos impostos sobre os derivados de petróleo, não por causa da alta dos juros básicos”, escreveu. Mas ele mesmo coloca a ressalva. “Esta é uma afirmação passível de ser contestada.” Eu acrescentaria apenas a pergunta: se os juros não subissem, essa inflação estaria onde está ou poderia ter se tornado hiperinflação? Acredito que igualmente ele responderia, “esta é uma afirmação passível de ser contestada.” Mas qual seria o preço para uma sociedade esgarçada como a brasileira se a inflação novamente ficasse fora de controle? Não defendo ou ataco a política de juros do BC. Apenas questiono se a proposta teria essa relação determinista. Ele viveu como protagonista a transformação que foi 1994, e sabe o tamanho da conquista.

  1. Investimento sem risco

No fim de seu artigo, André Lara Resende diz que no mundo, “só o Brasil garante aos rentistas uma taxa real perto de 8% ao ano sem risco e com liquidez imediata”. Verdade nua, crua e dura. Ele não escreveu, e está embutido, que se trata de uma das maiores ondas de transferência de renda do milênio, o que agravará ainda mais nossa desigualdade. Porque quem financia as grandes corporações e o topo da pirâmide social com esse retorno elevado e sem risco é o Estado brasileiro. E o faz às custas de não entregar serviços mínimos e/ou de qualidade ao grosso de seus cidadãos. Às custas de não ter dinheiro para o Bolsa Família.

O autor escreve que “as despesas públicas, sejam elas primárias ou vinculadas ao serviço da dívida, expandem a demanda agregada e podem vir a pressionar a inflação” e que “pode-se compreender que ambos fossem motivo de crítica, mas protestar contra os gastos autorizados pela PEC e simultaneamente defender a manutenção das absurdas taxas de juros fixadas pelo Banco Central desafia a lógica”. Concordo. Como ele diz, são dois pesos e duas medidas.

Mas novamente discordo de que a saída única está reduzida a essa PEC. Com seu conhecimento e sua autoridade, esperava uma defesa da transformação deste Estado Transferidor de Renda para Cima chamado Brasil. Do jeito que foi formatado, o discurso não mira em resolver uma questão estrutural. Apenas aponta para a cortina de fumaça legalista/moralista: uma PEC que fique dentro de comportamento contábil defensável em nome de ser auxílio à população desamparada. Se a saída for somente essa, haverá mil outras PECs (como haverá mil outras reformas da Previdência), mesmo que no lugar de PEC da Gastança ou PEC do Estouro a gente use nomes mais generosos. Eu até sugiro três: PEC do Papai Noel, PEC da Inocência Recorrente e PEC do Coelhinho da Páscoa. Em resumo, temo que o próximo artigo tenha como título “A PEC, outra vez!”. Dar ares de legalidade/moralidade ao tema esconde a falsa dicotomia de que o problema ou a solução é a PEC e não o Estado.

PS – Carlo Ginzburg escreveu um livro lindo, O queijo e os vermes. Mostrou que olhar a micro-história ensina a olhar a (macro) história. Vale para a economia de nossos tempos.