O músico inicia a contagem batendo os pés e balançando as mãos enquanto a baterista estala as baquetas no mesmo ritmo. No três, os integrantes da banda começam a tocar a canção que invade os ouvidos dos clientes do Maison Bourbon, uma casa dedicada à preservação do jazz, no número 641 da Bourbon Street, em Nova Orleans. ?Obrigado pela presença de todos?, o cantor anuncia no microfone. ?Nova Orleans precisa de muitos negócios e de muitos turistas.? Segue-se, então, ?What a Wonderful World?, de George Weiss e Bob Tiele, interpretada com maestria pelo lendário Louis Armstrong, um ilustre talento de Nova Orleans. Durante poucos minutos, a música proporciona a sensação de que, realmente, o mundo é maravilhoso. Mas é só impressão. Ao sair do French Quarter, a glamourosa área turística de Nova Orleans, a realidade mostra-se na sua versão mais cruel. Um ano e meio depois da destruidora passagem do furacão Katrina, a ferida ainda está aberta e os resquícios da hecatombe estão lá como se tivesse acontecido ontem. Centenas de quarteirões permanecem vazios, casas arrasadas com os pertences dos antigos moradores perecem ao sabor do tempo e carros revirados são encontrados no meio dos terrenos. Dos 440 mil moradores, apenas 190 mil retornaram aos lares e é difícil prever quando tudo voltará a ser como era. ?Realmente, não sei quando acontecerá?, disse à DINHEIRO o coronel Lewis F. Setliff, do US Army Corps of Engineers, a divisão do Exército americano responsável pelas obras de reconstrução de Nova Orleans. ?As pessoas voltarão quando tiverem oportunidades de emprego, as casas reconstruídas e infra-estrutura como água e energia elétrica?, revelou em uma sala do Ernest Convention Center, um espaço de convenções onde mais de 20 mil pessoas ficaram abrigadas no auge do furacão.

O resultado do Katrina impressiona. Nas seis semanas seguintes de sua passagem, 80% da cidade permaneceu inundada, 1,8 mil pessoas morreram e os prejuízos somaram US$ 75 bilhões. O impacto econômico com a saída de empresas, perda de empregos e turismo em baixa atingiu US$ 250 bilhões. ?A cidade está vazia e há poucas oportunidades de trabalho?, diz Laura Stwart, jovem moradora de Nova Orleans. O perfil da capital mundial do jazz também mudou. Todas as semanas, chegam novos moradores, principalmente hispânicos, em busca de trabalho na reconstrução da cidade. Os brasileiros também são encontrados. A construtora Odebrecht, por exemplo, instalou um escritório em agosto de 2006 para disputar as concorrências de obras orçadas pelo governo americano em US$ 4 bilhões até 2010. ?Por enquanto, fizemos apenas um muro de contenção com 120 metros de extensão?, revelou Paulo Suffredini, vice-presidente da Odebrecht nos Estados Unidos, em seu escritório na bela avenida Poydras. A obra de US$ 12 milhões, uma cifra relativamente pequena para os padrões da empresa, serviu para a companhia entrar no mercado e conhecer as vantagens e desvantagens locais. ?Faltam trabalhadores qualificados e, se precisar, traremos de outros Estados americanos?, diz Suffredini. A expectativa diante das oportunidades é grande. Afinal, a Odebrecht fez história nos Estados Unidos e construiu uma sólida relação de confiança com o US Army Corps of Engineers. Em 1999, a construtora ergueu a barragem de Seven Oaks Dam, uma obra de US$ 270 milhões na Califórnia, e foi eleita pelo Exército americano como a melhor do país naquele ano. ?Eles nos conhecem e sabem que temos condições de fazer grandes obras?, diz Suffredini.

O trabalho para resgatar a cidade de Nova Orleans, contudo, não está concentrado apenas nas grandes obras da construção. Dezenas de pequenas empreiteiras de todo o país estão se deslocando para a região em busca de contratos promissores na reconstrução e reforma de residências. O brasileiro Carlos Roberto Nunes de Alcântara Junior, de 21 anos, é um desses aventureiros. Nascido em Anápolis, em Goiás, ele vivia há sete anos no Estado de Nova Jersey com a família. ?Trabalhava em Atlantic City?, disse ele, enquanto caminhava entre casas destruídas nas desertas ruas do bairro de Lake View. ?Percebi que as oportunidades estavam aqui em Nova Orleans.? Junior, como é chamado, arrumou a mala, abriu a empresa CJ Construction, mandou imprimir panfletos e distribuiu de casa em casa. O resultado não demorou a aparecer. ?Estou pegando uma média de três reformas por semana?, diz ele. ?Às vezes surge propostas de reconstruir casas.? Neste caso, ele oferece o serviço completo com mão de obra, materiais de construção e acabamento. ?Cobro US$ 50 mil por esse trabalho?, afirma. No momento, diz ele, o negócio está fraco. Mas quando o mercado está aquecido, revela, chega a contratar 40 funcionários ? muitos deles também brasileiros, como o cuiabano Lúcio França. ?Estou em Nova Orleans há sete meses?, diz ele. ?Há muito trabalho para ser feito.?

A lentidão das obras e da ajuda do governo americano revolta os cidadãos creoles. Ao percorrer o centro de Nova Orleans, o taxista Adam Blum esbraveja. ?São todos mentirosos!? E prossegue. ?O governo foi negligente e a população foi esquecida?, diz em um tom de voz elevado. O que houve, em parte, foi uma sucessão de erros no manejo da verba pública. Estima-se que a Agência Federal de Administração de Emergência, a Fema, perdeu US$ 1,4 bilhão em fraudes e desvios. O dinheiro, mostraram sindicâncias, foi usado para comprar entradas de jogos do futebol americano, regabofes em casas noturnas e até mesmo em uma operação de mudança de sexo. Além disso, as companhias de seguro travam uma disputa ferrenha com os proprietários de imóveis. Desde o Katrina, elas desembolsaram US$ 10 bilhões em ressarcimento. O problema, contudo, é que as empresas estão fazendo o possível para se desvencilhar de mais gastos. A alegação é a de que muitos proprietários não tinham seguro contra enchentes, apenas contra ventos fortes. Enquanto a situação não se resolve, milhares de pessoas foram morar em outros Estados americanos e outros milhares vivem em trailers, acampados na frente de suas casas. Mas não são apenas as residências que estão na penumbra. Basta sair do centro, um oásis comparado ao restante da cidade, para comprovar. Shopping centers fechados com as vidraças estilhaçadas, supermercado Wal-Mart abandonado, KFC, McDonald?s, o parque de diversões Six Flags e outros ícones da cultura capitalista americana parecem ter saído de um filme de guerra.

Por enquanto, o trabalho realizado pelo Exército americano foi o de ?limpar? as ruas, tirar as águas da cidade e reconstruir todas as áreas de proteção, diques e muros. ?Esta parte está 100% concluída?, diz o coronel Setliff. ?O nosso trabalho é o de minimizar os riscos?, afirma. Hoje, diz ele, a proteção contra furacões e enchentes é bem melhor do que antes. Na reconstrução, uma equipe de 139 engenheiros trabalhou sem parar nos projetos. Para atingir a perfeição, eles trocaram experiências com engenheiros japoneses, também acostumados com tragédias naturais, e com profissionais holandeses, profundos conhecedores na área de construção de diques. ?Tínhamos linha direta com a Casa Branca e eles nos disponibilizavam recursos ilimitados.? A parte estrutural, ao que parece, foi bem reconstruída. É o que ficou provado, na semana passada, quando um tornado atingiu Nova Orleans e não danificou os muros de contenção. Os estragos ficaram restritos às áreas residenciais. Mas é aí que se esconde a grande questão que aflige os cidadãos. O que falta, na verdade, é enviar boa parte do dinheiro para a reconstrução das casas e também para trazer novos negócios para a região. Na visão da população, o presidente americano George W. Bush está mais preocupado com Bagdá. Afinal, o Iraque é, nas palavras do próprio Bush, prioridade. Indagado qual é, afinal, a prioridade, Nova Orleans ou Bagdá, o coronel Setliff desvia. ?Ambas são prioridades?, diz ele. ?Nas duas cidades, as pessoas precisam de ajuda.?

Nova Orleans pede socorro. Seja nas ruas ou em camisetas vendidas em pequenas lojas. Em uma delas, está estampada a frase Forget Iraq, Rebuild at Home (Esqueça o Iraque e reconstrua em casa). Apesar do triste cenário da cidade, as pessoas seguem em frente e, se não dá para esquecer a tragédia, tentam ganhar com ela. O furacão virou, de certa forma, um meio de subsistência para alguns cidadãos e para algumas empresas. Além do setor de construção civil, a área de turismo também sobrevive dos rastros do Katrina. A Gray Line, uma das maiores operadoras da região, inaugurou o Katrina Tour. Trata-se de um passeio que dura três horas e percorre as principais áreas destruídas. Nas casas, observa-se ainda a marcação da letra X pichada pela defesa civil que revela a data de inspeção e se alguém ou algum animal foi encontrado na residência. As árvores ainda estão caídas e a vegetação revirada. O roteiro turístico foi a única saída da empresa para reverter os efeitos na queda das receitas. ?A nossa intenção é deixar fresco na memória das pessoas o que aconteceu aqui em Nova Orleans?, diz o guia. Se essa é a idéia, todos os comerciantes adotaram a tática. Nas ruas, encontran-se suvenires que remetem ao Katrina, placas na Bourbon Street indicam Hurricane City (Cidade do Furacão) e até os bares mais badalados tiram proveito. No Maison Bourbon, o drinque Hurricane, cuja dose custa US$ 9,75, é um dos mais pedidos. Servido em um grande copo lotado de gelo, ele mistura rum com suco de cereja. É uma mescla doce demais para quem conheceu a amarga realidade de Nova Orleans.

A BILIONÁRIA CONTA DA CATÁSTROFE

US$ 250 bilhões
É o impacto econômico com o fechamento de empresas e perda de empregos

 

US$ 75 bilhões
Foram os prejuízos causados pelo furacão após sua passagem

 

US$ 10 bilhões
É quanto as empresas de seguro gastaram até hoje com indenizações

 

US$ 4 bilhões
É quanto a Casa Branca gastará em obras públicas até 2010

 

US$ 1,4 bilhões
Doado pelo governo americano foi desviado em fraudes