12/02/2010 - 6:08
Modelos como o hatch i-30 ganharam mercado com uma fórmula matadora: mais itens de segurança do que os concorrentes e um preço inferior
O médico paraibano Carlos Alberto de Oliveira Andrade, dono do grupo Caoa, representante da Hyundai no Brasil, não sabe articular uma frase em inglês, mas uma palavra do idioma ele consegue pronunciar com precisão britânica de tanto ouvi-la do alto comando da montadora coreana: ?Splendid!? (esplêndido) foi o que Andrade ouviu mais uma vez em janeiro, ao receber em São Paulo o vice-presidente mundial da Hyundai, Chang Hwan Han.
Ao colar os olhos nos números de venda do mercado brasileiro do início de 2010, em que a Hyundai já aparece em sétimo lugar no ranking das montadoras, o executivo coreano disparou novamente um rosário de elogios. De fato, os números da Hyundai no Brasil impressionam.
No acumulado de 2009, a montadora vendeu 71.069 veículos por aqui, um aumento de 62% sobre 2008. Na comparação com o mercado como um todo, a performance da Hyundai foi cinco vezes melhor. O avanço garantiu uma escalada no ranking brasileiro. Além de ultrapassar Toyota e Peugeot, a marca colou no retrovisor de Honda e Renault, e já não é exagero afirmar que ela pode sonhar com a quinta posição, atrás apenas do quarteto que historicamente domina o setor no País (Fiat, Volks, GM e Ford). No mundo, os coreanos também foram velozes.
Tucson nacional: fábrica em Anápolis (GO), do grupo Caoa, já produz o SUV mais vendido do Brasil
O forte crescimento, principalmente no mercado americano, fez com que a montadora coreana superasse pela primeira vez a Ford. Resultado: a Hyundai já é a quarta maior fabricante de automóveis do planeta, atrás de Toyota, GM e Volkswagen. ?Vamos chegar a 10% do mercado brasileiro em três anos. Pode escrever aí?, diz, confiante, Andrade.
Hoje, a empresa tem pouco mais de 3%. A participação é pequena, mas, levando-se em conta a velocidade de expansão da marca no Brasil, não é de espantar que, em breve, ela realmente incomode as gigantes do setor. ?A Hyundai deixou de ser uma preocupação distante para se tornar uma ameaça real para as quatro líderes do mercado?, diz Stephan Kees, diretor da Roland Berger no Brasil.
A maior do mundo: a fábrica da Hyundai em Ulsan tem a maior capacidade global.
E os carros estão a três minutos do porto
O que explica a ascensão de uma montadora que há pouco mais de uma década nem sequer figurava entre as dez primeiras do ranking mundial de automóveis? Poucas empresas do mundo conseguiram dar uma guinada tão veloz em sua imagem quanto a Hyundai. Durante muitos anos, os carros coreanos foram motivo de piada. Cópias malfeitas dos carros japoneses, eram feios e, pior ainda, pouco confiáveis.
Alguém se lembra do Excel, que chegou a ser vendido por aqui nos anos 90? O modelo, de tão ruim, simplesmente desapareceu do mercado. O Atos Prime, outro lançamento daquele período, virou sinônimo de mico. No Brasil, a Hyundai iniciou sua escalada de vendas em 2005, quando o grupo Caoa decidiu apostar na vinda do Tucson, importado da Coreia, para competir com outros utilitários esportivos.
O Tucson ganhou espaço rapidamente ao desbancar veículos do mesmo nível tecnológico ? caso do Honda CR-V ?, mas que possuíam preços maiores. O modelo básico do Tucson custa em torno de R$ 68 mil, menos do que os R$ 88 mil cobrados pelos CR-V O sucesso da Hyundai se repetiu com o sedã de luxo Azera e mais recentemente com o hatch i-30.
O modelo de luxo Azera já é o mais vendido da sua categoria. Mas a maior ameaça representada
pela Hyundai é a chegada de modelos populares, feitos no Brasil
Em todos os casos, a Hyundai conseguiu conquistar o consumidor valendo-se da irresistível combinação preço-qualidade. O Azera custa em torno de R$ 90 mil e seu principal concorrente, o Ford Fusion, sai por R$ 100 mil. Já o i-30 (na faixa de R$ 60 mil) leva vantagem por oferecer a maior lista de equipamentos de série, como airbag frontal e lateral e freios ABS, algo que os modelos da concorrência, como Astra e Golf, oferecem apenas como opcionais (leia-se custo excedente).
?Nos últimos anos, a Hyundai tem quebrado paradigmas, aumentando os programas de garantia, reforçando sua rede de concessionárias e lançando produtos de qualidade com preços atrativos?, afirma Corrado Capellano, sócio da consultoria Creating Value.
Como a Hyundai conseguiu o milagre de oferecer carros de qualidade a preços semelhantes ou às vezes inferiores aos dos rivais? Em primeiro lugar, é preciso entender o próprio modelo desenvolvido na última década pela montadora. No final dos anos 90, Chung Mong-Koo, filho do fundador, assumiu a empresa e tomou uma decisão de imediato: trocou todos os diretores, na sua maioria formados por administradores de empresas ou contadores (como é tradição na Coreia do Sul), por engenheiros de formação.
Ou seja, gente que acima de tudo entende de carro. Um diagnóstico feito por ele mostrou que apenas 100 profissionais eram responsáveis por todo o controle de qualidade da companhia. Em apenas um ano, ele ampliou por dez esse número, para um total de mil funcionários. Mong-Koo fez isso porque sabia que a qualidade era o ponto fraco da companhia.
A Hyundai fechou 2009 com faturamento de no Brasil, o que dá uma média superior a R$ 100 mil por carro vendido
O tema se tornou uma espécie de obsessão dentro da empresa. Em 2005, a Hyundai atrasou em seis meses o lançamento do sedã Sonata. O motivo: o Sonata não apresentava índices satisfatórios de segurança. Antes desse episódio, seria impensável para a empresa adiar um lançamento porque estava receosa quanto à qualidade do veículo.
Na virada do século passado, Mong-koo transmitiu uma determinação a seus subordinados. Era a hora de introduzir em suas plantas industriais o modelo de gestão da japonesa Toyota, uma espécie de benchmark do setor. O chamado Sistema Toyota de Produção consiste numa cadeia de suprimentos enxuta e altamente terceirizada, que prevê a eliminação dos estoques e a busca permanente pela agilização do processo produtivo. Isso só é possível com a eficiência logística.
Nesse aspecto, a Hyundai levou ao extremo o conceito de just-in-time. A unidade da Hyundai em Ulsan, na Coreia do Sul, maior complexo industrial do mundo, está instalada ao lado de um porto. Depois de prontos, os carros passam pela inspeção e seguem para o pátio que dá acesso ao porto. Detalhe: o trajeto não dura mais do que três minutos.
De lá, os automóveis partem para os mais diferentes pontos no mundo, processo tão eficiente que reduz de forma significativa os custos logísticos da empresa, tornando-os os mais baixos de toda a indústria automobilística. ?Hoje, a Huyndai está entre as montadoras que possuem os métodos produtivos mais eficientes?, diz o consultor Stephan Keese.
A agilidade produtiva e a eficiência logística são apenas alguns aspectos que contribuem para os preços menores dos carros da Hyundai. À exceção dos Estados Unidos, suas fábricas estão localizadas em países emergentes (além da própria Coreia do Sul, China, Índia, Turquia e Brasil), que têm custos de produção inferiores aos de nações desenvolvidas.
As despesas com mão de obra da fábrica de Ulsan, na Coreia do Sul, são 30% mais baixas que as da Toyota no Japão. Resolvido o problema da qualidade e com os preços baixos a seu favor, faltava à Hyundai contornar uma de suas maiores fragilidades: o design. Há uma década, a empresa passou a contratar os estúdios de design italianos, reconhecidamente os melhores do mundo, para desenvolver carros sob encomenda. A empresa também abriu um centro de desenvolvimento de design em Russelsheim, na Alemanha, e todos os seus carros globais passaram a ser criados ali. Um deles, o i-30, foi inteiramente concebido por desenhistas alemães.
No Brasil, Andrade adotou uma série de iniciativas que, associadas ao modelo global da Hyundai, levaram a montadora coreana a reduzir sua distância para os concorrentes. A Hyundai foi a primeira montadora a oferecer um programa de garantia de cinco anos, muito acima dos 12 meses tradicionais. Embora de início pareça uma desvantagem, representa uma fonte importante de receitas para o grupo.
É fácil de entender. Só tem direito à garantia quem fizer religiosamente todas as revisões definidas pela montadora, que acontecem a cada dez mil quilômetros. Essas revisões custam caro (no Tucson, em torno de R$ 1,5 mil, valor que sobe à medida que os carros envelhecem). No fundo, são os clientes que pagam pela revisão estendida. Andrade é dono de 63 das 163 concessionárias Hyundai no Brasil e fatura alto também com os serviços.
A montadora coreana fechou 2009 com R$ 7,8 bilhões de faturamento, o que dá uma média de R$ 100 mil por carro vendido. Como os veículos da Hyundai custam em média R$ 70 mil, os serviços acabam tendo peso decisivo nas receitas do grupo. Ao lucrar com isso, ele compensa os ganhos menores gerados por sua política agressiva de preços baixos ? é algo como ?eu perco aqui, mas ganho ali?.
Refestelado em uma confortável poltrona na sala de sua casa, Andrade acompanha em tempo real os dados fornecidos pela Bloomberg a respeito da cotação das principais moedas do mundo. Ele usa os dados a seu favor. Durante a crise mundial, iniciada no fim de 2008, o iene, a moeda japonesa, se valorizou fortemente perante o dólar, enquanto o won, a moeda coreana, deteriorou-se. ?Com isso, eu passei a importar carros com preços ainda mais atrativos que os da Honda, por exemplo?, diz Andrade.
?O Tucson, que eu comercializava entre R$ 70 a R$ 80 mil, hoje é vendido com preço 20% menor?, afirma Andrade. Assim que uma determinada cotação o favorece, ele aumenta os pedidos de carros à matriz. Algumas regras impostas por ele nos negócios da Hyundai no Brasil contrariam práticas tradicionais no mercado brasileiro. Quem quiser abrir uma concessionária Hyundai no Brasil precisa comprar antes todos os carros que estarão à venda nas lojas.
Com isso, Andrade antecipa receitas que, nos concorrentes, só são geradas com a venda efetiva dos carros. Ele diz que também consegue oferecer preços mais baixos porque conta com uma estrutura extremamente enxuta. O grupo Caoa é administrado por apenas seis diretores, algo como a metade de outras empresas do setor. ?Sou centralizador mesmo?, diz Andrade. ?Isso diminui a burocracia e torna a operação mais racional.?
No Brasil, os investimentos estão sendo intensificados. A matriz desembolsou US$ 700 milhões para começar, em maio, as obras da fábrica em Piracicaba, no interior de São Paulo, que a partir de 2012 terá capacidade para produzir 150 mil veículos, entre eles um novo carro desenvolvido especialmente para o mercado brasileiro. A Hyundai, que no Brasil se caracterizou por comercializar carros mais caros, irá fabricar por aqui modelos populares, com motor 1.0 e 1.6.
Com isso, entrará de vez na briga por consumidores de classe média, faixa de renda amplamente dominada por Volkswagen, Fiat, GM e Ford. Se o novo carro repetir o histórico de sucesso de outros carros da marca no País, o Brasil tem grandes chances de ultrapassar a China e se tornar o terceiro mercado mundial da Hyundai, atrás apenas dos Estados Unidos e da Coreia do Sul.
Pelo contrato de Andrade com a Hyundai, que vai até 2028, sua fábrica em Anápolis, em Goiás, ficará responsável por todos os carros 2.0 e acima dessa cilindrada, enquanto a nova fábrica produzirá as versões mais populares. Oliveira garante que o carro produzido especialmente para o mercado brasileiro, já pronto na Coreia, também vencerá a concorrência pelo mesmo motivo pelo qual carros como Tucson, Azera e i-30 bateram em vendas seus principais concorrentes.
?Será um carro com tecnologia de ponta, que terá um custo-benefício muito maior.? Com ações como essas, Andrade espera ouvir muitas vezes a palavra ?splendid? de seus chefes na Coreia.
O modelo japonês em xeque
Durante muitos anos, o selo Made in Japan foi garantia de qualidade. E se isso viesse estampado num produto da Toyota, seria sinônimo de excelência. Nas últimas semanas, após os diversos recalls anunciados pela montadora japonesa, incluindo um de 400 mil veículos do modelo híbrido Prius, essas certezas foram abaladas. Prejudicaram a reputação da Toyota, mas também colocaram em xeque todo o modelo de japonês de produção.
Esse sistema revolucionou a indústria automobilística, trazendo inovações como o just-in-time, uma medida que reduzia a zero os estoques no chão de fábrica. No entanto, avançou demais em aspectos como a terceirização. E transferiu para os fornecedores não apenas a produção, mas o próprio desenvolvimento de componentes centrais para a segurança dos veículos, como os freios defeituosos do Prius.
Quando os problemas vieram à tona, os prejuízos foram todos da Toyota, que perdeu US$ 21 bilhões em valor de mercado em apenas duas semanas. Além disso, era justamente a percepção de que os carros japoneses eram melhores que permitiam às montadoras de lá cobrar um sobrepreço em relação aos rivais ? como os modelos coreanos da Hyundai.
?As falhas são um aviso importante para as indústrias japonesas, que estavam se acomodando com o próprio sucesso?, disse à DINHEIRO Corrado Capellano, consultor da Creating Value.
(Tatiana Vaz)