30/05/2007 - 7:00
ZULEIDO VERAS: na OAS, ele aprendeu a fazer favores. Depois, criou a sua empresa
Era 5 de julho de 2003, um sábado ensolarado, quando um caminhão encostou na avenida Tancredo Neves, em Salvador. Nele, foram empilhadas diversas caixas com os editais das obras, as planilhas dos contratos, as notas fiscais, alguns computadores e toda a contabilidade – oficial e paralela – da construtora Gautama. Bem em frente ao caminhão, o empresário Zuleido Veras acompanhava de perto a “operação”. Estava tenso e apressado. Dias antes, ele havia mandado trocar as fechaduras do escritório para impedir a entrada na Gautama de seu ex-sócio, o também empreiteiro Latif Abud. Os dois estavam rompidos, quase jurados de morte, e Zuleido queria guardar em local seguro os segredos da Gautama. No mesmo dia, o caminhão partiu para São Paulo e os papéis foram trancados num depósito, no bairro da Água Rasa. No fim daquele mês, no entanto, surgiu o primeiro revés. Depois de instaurado o inquérito policial 676/2003, Latif conseguiu que um delegado expedisse mandado de busca para recuperar a papelada e os discos rígidos da construtora. Depois disso, a disputa societária atingiu níveis intoleráveis. “Um jurou destruir o outro”, disse à DINHEIRO um amigo íntimo de Zuleido.
Polícia Federal negocia com Zuleido uma delação premiada que espalha pânico no Congresso Nacional
Nascia ali, com essa quebra da omertà entre dois empreiteiros, a Operação Navalha. Dossiês apócrifos foram espalhados na Bahia, de lá chegaram a Brasília e acabaram fornecendo subsídios às primeiras denúncias de um esquema que prendeu 47 pessoas, derrubou um ministro e ainda respinga em empreiteiras maiores, como a Queiroz Galvão (leia reportagem à página 30). A briga entre Zuleido e Latif fornece a chave para entender como funcionava uma das maiores máquinas de favores que o Brasil já conheceu. Zuleido, um habilidoso paraibano de 62 anos, fez carreira na empreiteira baiana OAS e se tornou o “embaixador” da construtora em Brasília. Lá, ele cuidava do relacionamento político e distribuía presentes a parlamentares, e foi assim que “Mexicano” – este é seu apelido – aprendeu que o trunfo de uma empreiteira no Brasil não é a engenharia civil. É a engenharia de contratos, que vai desde a redação de editais viciados até a liberação de verbas do Orçamento. Latif, também ex-OAS, era um tocador de obras. Quando os dois se uniram para criar a Gautama, em 1995, Zuleido prometeu uma sociedade meio a meio. Tempos depois, “Mexicano” expulsou Latif da empresa porque estava convencido de que a engenharia era o menos importante no negócio. “Isso se compra em qualquer esquina”, dizia Zuleido. Magoado, o maratonista e pescador Latif criou sua empreiteira, a LJA, e passou a disputar negócios com a Gautama. Há grampos na PF em que “Mexicano” se refere ao ex-sócio, a quem chama de “quibe”, falando em armações e vinganças.
LATIF ABUD: expulso da Gautama, ele abriu inquérito policial que apreendeu todos os segredos da empreiteira
A rotina da Gautama, no entanto, ia muito além da disputa entre Zuleido e Latif. Oferecendo favores, pagando propinas e sugando o Orçamento, a Gautama subiu como um foguete. Conseguiu contratos de R$ 1,5 bilhão com prefeituras, Estados e a União. Além disso, “Mexicano” também criou a Ecosama, que conseguiu vencer uma licitação de R$ 1,62 bilhão para explorar o lixo da cidade de Mauá, na Grande São Paulo, por 30 anos. Seu esquema era sofisticado e operava em vários níveis. Tudo começava na esfera municipal, onde Zuleido convencia prefeitos a lançar editais sob medida para a Gautama. Em seguida, “Mexicano” se articulava com parlamentares – e há mais de 80 na sua lista de favores – que incluíam emendas destinadas às suas obras. Ato contínuo, os lobistas de Gautama se infiltravam nos ministérios para que as emendas fossem executadas – foi o vídeo de uma funcionária rondando o gabinete do ministro Silas Rondeau, de Minas e Energia, com supostos R$ 100 mil que o derrubou. O último estágio era o Tribunal de Contas da União, onde a Gautama agia para legitimar os contratos. E, sempre que recebia favores, Zuleido não dizia o tradicional “obrigado”. Nas conversas grampeadas pela PF, ele terminava os diálogos com um revelador “parabéns”. Sua generosidade, no entanto, nem sempre funcionava. Em 30 obras, o TCU apontou irregularidades. Muitas não foram entregues.
Com seu esquema desnudado, Zuleido foi preso acompanhado do filho Rodolpho, que também se envolveu na guerra com o ex-sócio. Hoje, os dois vêm sendo assediados pela PF para que aceitem a proposta de delação premiada – ao entregar os cúmplices, o dono da empreiteira e seu herdeiro reduziriam a pena nos processos que virão pela frente. “No mínimo, o Zuleido irá trocar figurinhas conosco”, revelou à DINHEIRO um delegado envolvido no caso. Um precedente é o do mensalão. O publicitário Marcos Valério não fez uma delação formal, mas repassou informações importantes à PF.Zuleido ainda não decidiu o que fará. Mas o fato é que ele sabe demais – e já não tem mais futuro algum. “Ele é carta fora do baralho”, disse à DINHEIRO um dos maiores empreiteiros do País. “Seu faturamento será redistribuído entre os concorrentes.” O contrato de lixo em Mauá já foi perdido e o governo deve declarar a Gautama como empresa “inidônea”, o que a excluiria de todas as obras do PAC. Até agora, as investigações da Operação Navalha já citaram nomes graúdos da política. Entre eles, o presidente do Congresso, Renan Calheiros (PMDB-AL), cinco governadores e dois ex-governadores. Eles são Jackson Lago (PDT-MA), Wellington Dias (PTPI), Jaques Wagner (PT-BA), Marcelo Déda (PT-SE), Teotônio Vilela Filho (PSDB-AL) e os “ex” João Alves Filho (DEM-SE) e José Reinaldo (PMDB-MA), que chegou a ser preso. Além disso, a Polícia Federal apreendeu a lista de presentes que Zuleido distribuía regularmente aos parlamentares, que inclui até uísques importados para o senador Romeu Tuma (DEM-SP).
Com tantos interesses envolvidos, pouca gente aposta que o Congresso Nacional irá instalar uma CPI séria, para investigar os esquemas das empreiteiras. Uma voz isolada é a do senador Pedro Simon (PMDB-RS), que vem tentando investigar, há 14 anos, a relação das construtoras de obras públicas com os poderes Executivo e Legislativo. Durante os escândalos “PC Farias” e dos “anões do Orçamento”, Simon lutou para criar uma CPI das construtoras, mas não conseguiu apoio. “As empreiteiras controlam o Orçamento da União”, disse Simon à DINHEIRO. “Elas são mais perversas do que qualquer sanguessuga e é bem provável que tudo continue assim se não houver um real interesse em desbaratar a quadrilha que essas empresas formaram”.
O fato é que a velha briga entre os empreiteiros Zuleido e Latif abriu a caixa de Pandora. E a tranqüilidade de “Mexicano” nunca mais será a mesma.
Embora os grampos da Polícia Federal revelem um empresário falastrão, Zuleido era absolutamente discreto na vida pessoal. Abria sua casa de R$ 4 milhões somente a diretores da Gautama e aos raríssimos amigos que fez na Bahia. Uma exceção ocorreu no dia 17 de março deste ano, quando o cantor Chico Buarque disputou uma partida no campo de futebol society de Zuleido, com o seu time Politheama. Zuleido, no entanto, gostava de jogar tênis. Sua bebida era a cerveja. Ele raramente ia a restaurantes finos e também não conhecia vinhos caros. Seus objetos de luxo eram os carros importados e a lancha que foi emprestada ao governador Jaques Wagner e à ministra Dilma Rousseff. Além de muito apegado aos filhos Rodolpho e Clara, Zuleido costumava levar sua esposa, Jane, nas freqüentes viagens “político-comerciais” que fazia a Brasília, onde os dois se hospedavam no Hotel Bonaparte. “Eu viajo tanto que essa é a única forma que eu tenho de passar alguns dias com ela”, dizia aos amigos. “Ralo demais”, costumava repetir Zuleido. O dono da Gautama era um homem fechado, muito dedicado aos negócios e à família. O que ninguém sabe é como ele irá se comportar se tiver de depor numa CPI do Congresso. E essa é uma possibilidade que faz meia Brasília tremer.
LIXO VALIOSO: em Mauá, ele fechou concessão no valor de R$ 1,6 BILHÃO
SEM OBRAS Contratos, muitas vezes inacabados, totalizavam R$ 1,5 BILHÃO