Está em curso nos bastidores da indústria brasileira uma disputa que, pela sua intensidade, pode ser definida como uma guerra, a guerra do aço. O elemento central desse conflito é o preço do metal que nos últimos dois anos aumentou em cerca de 60% e bateu de longe os índices gerais de inflação. Os consumidores de aço, reunidos em suas associações de classe, estão furiosos e pressionam. Exigem do governo providências para conter os preços desse insumo essencial. No último dia 5, o ministro Luiz Furlan, do Desenvolvimento, recebeu uma carta da associação de fabricantes de máquinas, a Abimaq, informando que as conversas diretas estimuladas pelo ministro entre seus associados e as siderúrgicas não haviam produzido acordo entre as partes. Agora, diz a carta, o governo deve agir. ?A medida mais urgente é a redução das alíquotas de importação de aço a zero?, defende Luiz Carlos Delben Leite, presidente da Abimaq. ?Se isso não funcionar, pode-se criar um imposto sobre exportações de aço ou estabelecer cotas de venda ao mercado externo.? A proposta da indústria de base é endossada por 10 associações empresariais. Juntas, elas consomem 30% da produção brasileira de aço, que atinge 30 milhões de toneladas anuais.

 

Se fosse apenas uma questão de tarifas de importação, a disputa em torno do aço já poderia estar resolvida. Bastaria que o governo Lula, repetindo o que fez FHC no início do Plano Real, abrisse os portos à entrada de produtos estrangeiros a preços mais baixos. Mas desta vez não é tão simples. Estimulada pelo consumo chinês, que cresceu espantosos 30% nos últimos dois anos, a indústria mundial do aço está à beira de um colapso produtivo. Os preços do produto final decolaram, o valor dos insumos para produção do metal está disparando e até mesmo o frete fugiu ao controle. Em números: o índice que mede preço de fretamento de navios saltou de 1.800 em janeiro de 2003 para 4.400 no mês passado. Nos últimos cinco anos ele nunca havia ultrapassado 1.800. Outro indicador: os preços do níquel, molibdênio e vanádio, três materiais usados na fabricação de aço, duplicaram nos últimos 12 meses. Os especialistas internacionais calculam que o mundo deve consumir 840 milhões de toneladas este ano ? contra somente 808 milhões em 2002 ? e que o equilíbrio entre oferta e procura só retornará por volta de 2007, quando as novas aciarias chinesas entrarem em operação. ?Estamos no meio de um ciclo de demanda mundial muito forte?, afirma o economista Thomas Souza, analista-chefe da Merrill Lynch em São Paulo. ?O governo pode derrubar a tarifa de importação que não vai acontecer nada. Os preços do aço são globais e vão continuar subindo.?

Essa lógica simples e globalizada pode estar correta, mas não resolve o drama da indústria brasileira. Na Dedini, tradicional fábrica de equipamentos localizada na cidade paulista de Piracicaba, o impacto da elevação do aço tem sido brutal. A empresa constrói destilarias e tanques para usinas de açúçar e o aço inoxidável fabricado pela Acesita constitui 40% dos seus custos. Nos últimos 14 meses o produto teve um aumento de 42% e acabou com a margem da empresa, cujo ciclo de produção de quase um ano não comporta essas flutuações de preço. ?Não dá para absorver aumentos tão acima da inflação. Isso teria que ser evitado?, diz Tarcísio Mascarenhas, presidente da empresa. O executivo lembra que no início dos anos 80 houve uma situação semelhante no mercado internacional de aço. A Dedini, que naquela época tinha uma siderúrgica, estava exportando firme e cobrando no mercado interno os preços internacionais. Um belo dia o presidente da companhia recebeu um telefonema pessoal do ministro Delfim Netto, então czar da economia. ?Ele deu um recado direto?, conta Mascarenhas. ?Disse que o mercado nacional estava desabastecido e que se os preços não caíssem o governo iria intervir.? Os preços caíram.

Os tempos, naturalmente, são outros. Mais do que no passado, o mercado brasileiro hoje é permeável a várias formas de inflação externa. O aço é uma delas. O Estado brasileiro desmontou seu sistema de controle de preços e agora o mercado se auto-regula, com base na oferta e procura de seus inúmeros produtos. Isso, assim como a persistente estagnação da economia, tem mantido sob controle a inflação que explodia no tempo de Delfim. Mas há imperfeições. Para exemplificá-las, basta lembrar que a Acesita é o único fabricante nacional do aço inoxidável usado pela Dedini. Não há competição nesse mercado. Nos outros produtos ela existe, mas é imperfeita. CSN, Usiminas e CST produzem quase todas as chapas de aço fabricadas no País. Belgo Mineira e Gerdau respondem por 80% da produção de vergalhões. A privatização do início dos anos 90 gerou uma concentração privada que confere grande poder aos fabricantes ? e em tempos favoráveis, como os atuais, produz balanços espetaculares. A CSN de Benjamin Steinbruch faturou R$ 5,2 bilhões nos primeiros nove meses de 2003, quase 44% mais do que no mesmo período de 2002. Reverteu um prejuízo de R$ 576 milhões para um lucro de R$ 733 milhões. Mas é importante lembrar que as siderúrgicas investiram US$ 14 bilhões desde 1994 e tornaram-se máquinas afiadas e competitivas ? embora a produção brasileira de aço, segundo o Iedi, continue inferior à dos ano 80. ?Uma parte dos bons resultados das siderúrgicas se explica pelos preços, mas a gestão deles é muito boa?, diz Luciana Machado, analista do Fator.

Monopólios privados. A percepção do mercado consumidor é menos entusiástica. ?A privatização foi malfeita. Ela criou monopólios privados?, opina Mario Milani, fabricante de filtros e suspensões de São Bernardo do Campo, em São Paulo. Dono das marcas Fram e Alevar, ele fornece para as grandes montadoras de automóveis e sente-se emparedado: as usinas sobem seus preços e as montadoras, com 43% de ociosidade, não aceitam repasses, embora elevem os preços dos carros com freqüência. ?Eu sou o salame desse sanduíche?, lamenta o industrial italiano. A própria indústria automobilística, porém, queixa-se veementemente. Rogélio Golfarb, diretor de relações corporativas da Ford, diz que toda a cadeia automotiva está sob intensa pressão por causa do preço do aço internacionalizado. ?Estamos fazendo um esforço brutal de adaptação, mas a magnitude da variação de preços tem sido insuportável?, diz ele. O executivo diz que a Ford é contra a intervenção do governo nesse mercado, mas, ao mesmo tempo, sustenta que a indústria do aço tem de ?moderar os aumentos e buscar o entendimento?. É uma espécie de convite, ou ameaça sem dentes, para que as siderúrgicas tirem o pé do acelerador. ?As montadoras se queixam para abocanhar um pouco mais de vantagens no mercado brasileiro?, descarta José Armando Campos, presidente da CST e do Instituto Brasileiro de Siderurgia, entidade que representa o setor junto ao governo e a indústria.

No último 6 de janeiro esses dois pontos de vista foram apresentados ao ministro Luiz Furlan em uma reunião do Fórum de Competitividade da Indústria Siderúrgica. Fabricantes de aço e consumidores de aço esgrimiram argumentos diante do ministro, que preferiu não tomar partido. Os representantes da siderúrgicas, entre os quais estava Jorge Gerdau, dizem ter ?desmistificado? a tese do aumento de preços abusivo. Explicaram que seus custos estão subindo mas que, mesmo assim, os preços no Brasil ainda são menores do que no resto do mundo ? e não estão afetando a inflação. Já os porta-vozes dos consumidores, que foram apanhados de surpresa pela reunião e estavam em pequeno número, garantem que sua apresentação foi tão contundente que forçou o ministro a estabelecer o prazo de um mês para o entendimento entre as partes. Até agora o único resultado desse ultimato foi a carta enviada pela Abimaq no início deste mês, dando satisfações e cobrando uma posição de Furlan.

Como o ministério fechou-se em copas, não se sabe se o ministro vai ou não se meter nessa briga. Antes de fazê-lo, terá de ponderar umas tantas variáveis. A primeira delas é a oposição das poderosas siderúrgicas à eliminação das alíquotas. As usinas dizem que a medida seria inócua do ponto de vista de preços e prejudicial ao Brasil do ponto de vista das negociações comerciais. Outra coisa que o ministro terá de levar em conta é que a eliminação desse imposto de importação, que varia entre 12% e 16%, pode ou não produzir resultados imediatos sobre o preço do aço brasileiro, mas abrirá uma porta pela qual o aço estrangeiro (talvez da própria China) poderá entrar no Brasil quando a escassez global acabar. Há também a questão dos investimentos. A indústria siderúrgica brasileira, responsável por cerca de 13% do saldo comercial do País, planeja investir US$ 9 bilhões até 2008, mas para fazer isso tem de arrostar consideráveis riscos externos. Afinal, a economia interna não decola e nada garante que a farra atual de preços vai prosseguir no mercado internacional depois de 2007. É justo intervir agora quando a indústria está ganhando um dinheiro que pode faltar no futuro? O ministro terá de decidir levando em conta os interesses do conjunto da economia. ?O Brasil está inserido no mundo?, diz Campos, presidente da CST. ?Não adianta mais ficar brigando no governo para conseguir uma rede de proteção interna. Isso acabou.? Com a palavra, o ministro.