Naquela que, sem dúvida, é a obra-prima de Fiódor Dostoiévski e que, talvez, seja um dos romances mais completos e importantes da história da literatura universal, “Irmãos Karamazov”, há um capítulo extremamente duro e pesado em que um dos irmãos, Ivan, intelectual e cético, aponta para o caçula, Aliocha, suas razões para a total descrença na humanidade e justifica a decisão de, no momento oportuno, “entregar de volta o seu bilhete de entrada na vida”. Segundo Ivan, o grande problema da existência não está tanto em saber se Deus existe ou não, mas em ter de aceitar algo tão ignóbil e irracional como o ser humano. E o coroamento de sua consistente argumentação culmina na explicitação de atos de crueldade cometidos contra os inocentes – principalmente as crianças.

São páginas e páginas de histórias horrendas que Dostoiévski ouviu ou recolheu da imprensa da época sobre perseguição, maus-tratos, torturas e assassinatos de crianças e bebês perpetrados não só por bandidos e malfeitores, mas também por pacíficos e educados pais de família. Segundo Ivan, tais atos, absolutamente inaceitáveis, seriam a prova cabal do absurdo existencial que caracteriza esta espécie que se convencionou chamar de humana. Diante da exposição tão ilustrativa e bem documentada apresentada por seu irmão mais velho, Aliocha, rapaz amoroso e religioso (preparava-se, naquela ocasião, para entrar para um convento de monges ortodoxos), vê sua fé e sua esperança serem fortemente abaladas. E poderia ser diferente?

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CRONICAMENTE INVIÁVEL

Diante dos recentes acontecimentos envolvendo ataques e assassinatos de crianças e bebês em creches e escolas e a crescente onda de ameaças que proliferam nas redes sociais, prometendo novas chacinas e destilando um ódio pavoroso contra a parcela mais inocente e vulnerável da humanidade, foi inevitável lembrar deste capítulo contundente de “Irmãos Karamazov” e, tal como Aliocha, me vejo tentado a perder todo alento e esperança, passando a concordar com o irmão Ivan, para quem a raça humana é cronicamente inviável, e a nossa existência, uma espécie de brincadeira de mau gosto, da qual os mais inteligentes escolhem a honrosa saída de devolver o bilhete de entrada.

Paradoxalmente, entretanto, no mesmo romance que nos oferece uma das visões mais lúcidas e realistas da predominância do mal no ser humano, nos levando a um efetivo beco sem saída, encontramos também razões para ter esperança. Num outro momento da narrativa, o mesmo Aliocha se encontra com o irmão primogênito, o apaixonado e impetuoso Dimitri. Inspirado pelo amor de uma arrebatadora mulher e por uns calicezinhos de vodca, Dimitri profere uma das imagens mais extraordinárias e grandiosas que, a meu ver, melhor expressa a condição do ser humano na terra: “O Bem e o Mal travam uma guerra constante e interminável, e o campo de batalha é o coração humano”.

Para além da imagem do campo de batalha, gosto de pensar o coração humano como um campo de cultivo, onde sementes boas e más são lançadas a todo momento e pragas e ervas daninhas se desenvolvem junto com plantas benéficas e úteis. Em última análise, Dostoiévski nos ensina que o Bem e o Mal não são coisas externas a nós e que não existe “gente do bem” e “gente do mal”, mas ambas as coisas crescem juntas e misturadas no coração de cada um. Dessa forma, a guerra contra o Mal deve ser travada, em primeiro lugar, por cada um dentro do seu próprio coração e, ao mesmo tempo, na vigília constante sobre o que semeamos no coração dos outros. Esta abordagem talvez nos ajude a lidar de forma mais efetiva e racional frente a essa nova praga de ódio e violência que anda grassando no coração de crianças, jovens e adultos nestes tempos tão tumultuados em que estamos vivendo.

Em “A Peste”, Albert Camus conclui que a maior doença que a humanidade enfrenta não é aquela que procede dos vírus e bactérias, mas sim a que deriva da falta de atenção com o próximo. Precisamos com urgência prestar atenção. Primeiramente ao que cresce em nosso próprio coração e, em seguida, ao que semeamos, consciente ou inconscientemente, no coração dos outros, principalmente dos mais novos, dos inocentes, daqueles que estão em plena formação. Certamente que prestar atenção ao que circula na internet, nas redes sociais, é algo urgente.

Esta talvez seja a frente mais imediata da batalha contra a praga da violência. Entretanto, a ação não pode parar por aí, mas deve envolver também a retaguarda, ou as raízes mais profundas das ervas do mal. Pais e educadores devem deixar de estar distraídos com tantas coisas e preocupações mundanas para voltar sua atenção ao que anda crescendo no coração de seus filhos, alunos. Atenção vigilante não só de sentinela e guerreiro, mas também de jardineiro trabalhador e fiel. Quanto se poderia evitar de absurdos e tragédias como essas que estamos testemunhamos quase todos os dias se estivéssemos mais atentos aos que estão perto de nós, vigiando e cuidando do que cresce em seus corações?