24/12/2003 - 8:00
Um fenômeno novo mudou as feições da guerra das cervejas que ocorre todos os anos às vésperas do verão. Trata-se do consistente avanço do grupo Schincariol, com sede em Itu, no interior de São Paulo. Até o meio do ano, em julho, a empresa contava com 10% de participação no mercado nacional, mas conseguiu dar um salto que representou, em novembro, 15,2%, registrando apenas na Grande São Paulo um crescimento de 104% em suas vendas. Em contrapartida, sua principal rival, a líder de mercado AmBev, detentora das marcas Antarctica, Brahma, Skol e Caracu, viu sua fatia ser reduzida no mesmo período de 68,7% para 63,8%, segundo pesquisa do Instituto Nielsen, atingindo sua pior marca desde a fundação da companhia três anos atrás. O crescimento surpreendente da Schincariol foi sustentado por uma bem-sucedida estratégia de marketing em torno de um produto recém-lançado, a Nova Schin, que está revirando o mercado sob o lema ?experimenta?. Fruto deste fenômeno é o acirramento da disputa entre as grandes fabricantes, que agora extrapolou as gôndolas dos supermercados e chegou às raias de uma guerra de dossiês. Um deles, obtido na semana passada com exclusividade pela DINHEIRO, é talvez o mais contundente documento já produzido a respeito dos subterrâneos do setor de cerveja. Nele, Edson Guterres, um transportador e fornecedor de insumos como malte e lúpulo para diferentes companhias, declara abertamente que montou esquemas de sonegação fiscal para as principais cervejarias, especialmente a Schincariol. Esses esquemas teriam funcionado até recentemente e rendido milhões de dólares ao caixa dois de seus participantes.
?Eu dou um lucro extraordinário para as cervejarias, fantástico?, conta ele, que afirma ter recebido dinheiro vivo em maletas por seus serviços. ?Estilo Schincariol?, define. ?É quilo, quilo de dinheiro. Quantos quilos tem aí. Tem uma sala lá deles com fedor de dinheiro, não dá para entrar.? Pouco depois, conta que também agiu a favor de outra bandeira. ?Eu trabalhei um ano na Antarctica, fazendo sonegação?. ?Pra Antarctica??, pergunta seu interlocutor. ?É. Foi ?os? anos em que a Antarctica subiu para dar o pool pra AmBev, pra Brahma pegar ela?. Guterres adianta ter ciência de um esquema de proteção político administrado pela AmBev. ?A AmBev tem… são 20, 30 deputados na mão, né? Faz chuncho pra caramba. Conheço todas as jogadas que eles fazem.?
Procuradas pela DINHEIRO, as duas companhias reagiram cada uma à sua maneira às afirmações. Adriano Schincariol, diretor da empresa que leva o sobrenome de sua família, admitiu conhecer Guterres. ?Ele aparecia lá na empresa, fazendo transporte e venda de insumos. É uma pessoa que não presta. Noventa e nove por cento do que ele está dizendo é mentira?, diz. Pela AmBev, o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro foi escalado para atender a reportagem. ?Fui contratado ontem (quarta, 17) para atender esse caso. Se as declarações se confirmarem, a AmBev vai processar quem está procurando atacá-la com essas mentiras?, anunciou. Também disse que está estudando o melhor meio de exigir das autoridades uma devassa no setor. ?Queremos uma investigação completa no setor das cervejarias, passar tudo a limpo.? Também envolvido diretamente nas denúncias de sonegação, o empresário Walter Farias, acusado de ter se beneficiado de um esquema de compra e venda de algodão sem notas fiscais, além de distribuir cerveja ilegalmente, não foi localizado. A Schincariol contratou o advogado Paulo Esteves para encontrar Guterres. Ambos registraram em cartório um desmentido às declarações ?eventualmente gravadas em vídeo?.
O problema é que, efetivamente, Guterres foi gravado em perfeitas condições de imagem e som. Este material está documentado em vídeo e transcrito num laudo de 97 páginas assinado em 8 de dezembro deste ano pelo perito criminal Edmundo Braun. O material chegou à Associação Brasileira de Combate à Falsificação ? entidade formada por mais de duzentas grandes companhias, entre elas as gigantes Microsoft, Gessy Lever, Coca-Cola e a própria AmBev ? de forma anônima. ?As denúncias são gravíssimas e precisam ser apuradas?, afirma o diretor de comunicação da ABCF, Fernando Ramazzini. Após pedir a degravação oficial da fita, Ramazzini foi a Brasília entregar pessoalmente cópias do vídeo e do laudo pe-
ricial ao deputado Luiz Antônio de Medeiros, presidente da CPI da Pirataria e da Sonegação, instalada na Câmara dos Deputados. O material é explosivo. ?Eu montei esse esquema de vender matéria-prima sem nota e deu certo?, conta Guterres a um interlocutor
cuja imagem não aparece na fita. ?Faz oito anos que eu comecei,
com um saco. Hoje eu vendo, se tiver, dois, três navios. Chega
aqui no porto, a gente ajeita as coisas.?
O vídeo foi feito, aparentemente, sem o conhecimento de Guterres. Sentado diante de uma mesa com cafeteira e xícaras dentro de um escritório de móveis brancos, ele fala com desembaraço e naturalidade, sem olhar para a câmera posicionada à sua frente. Ela estava munida
com uma fita capaz de, segundo apurou o perito Braun, registrar 360 minutos de imagens e som em velocidade EP. Ao desfiar seus segredos, de saída ele incrimina a si próprio, o que reforça sobremaneira a possibilidade de o aparelho ter ficado escondido. Guterres, aponta essa evidência, caiu numa armadilha. Entende-se ao assistir a fita que ele foi atraído ao escritório de um suposto investidor interessado em dar-lhe recursos para abrir sua própria cervejaria, em lugar de apenas servir como intermediário de matéria-prima sem nota para os fabricantes tradicionais. O encontro foi intermediado por um homem citado pelo nome de Felipe. A pre-
texto de obter informações do esquema de venda de malte e lúpulo sem notas fiscais, o suposto investidor faz 1.052 intervenções no diálogo, de modo a arrancar as revelações do esquema ilegal que,
em vários momentos, Guterres conta com orgulho. Não é possível precisar a data de gravação do vídeo, mas informações contidas na conversa sugerem que tenha se dado entre janeiro e agosto deste ano. O principal elemento para esta conclusão é que os interlocu-
tores referem-se ao empresário Nelson Schincariol, assassinado
em 18 de agosto, como um homem em pleno exercício de suas atividades. ?Quem manda é ele?, diz Guterres. Outra informação, combinada a esta, sugere que ele falou depois da posse do novo governo. ?Quem segura para eles lá em Brasília (lobby)??, pergun-
ta o interlocutor. ?Hoje, agora, não sei, porque mudou tudo, né??. Confira os principais trechos da fita:
Logo no início do diálogo com o suposto investidor, Edson Guterres se apresenta como alguém íntimo do mercado cervejeiro e com grande poder junto aos principais fabricantes. Provocado pelo interlocutor, que se diz interessado em tê-lo como parceiro em uma cervejaria, ele abre suas cartas e fala abertamente de sonegação.
Quem é o fantasma
?Eu vendo praticamente 50% sem nota?
Investidor ? Quem é o Edson hoje no mercado de cervejaria?
Edson Guterres ? Hoje no mercado de cervejaria?
Investidor ? É.
Guterres ? Hoje eu sou um fantasma. Eu vendo praticamente 50% sem nota. Só que esse fantasma hoje significa 5% do mercado nacional de matéria-prima. Dá em torno de 27 a 30 milhões de dólares ano.
Investidor ? Nós conseguiríamos operar dessa forma, continuarmos a operar dessa forma?
Guterres ? Conseguiríamos, conseguiríamos.
Em outro trecho da gravação, Guterres volta a se autodefinir como um personagem tão misterioso quanto influente.
Guterres ? Eu sou um cara conhecido no mercado, mesmo sendo um fantasma, eu sou um cara…
Investidor ? Não, você é conhecido, não foi difícil te achar não. Conhecido e bem conceituado, um cara que sabe das coisas.
Maiores clientes
?Dou um lucro extraordinário para as cervejarias?
Durante a gravação, Guterres vai detalhando, pouco a pouco, os diversos esquemas de sonegação que seriam praticados por quase todas as companhias do setor. O principal deles ocorreria com a compra de grandes quantidades de malte, um dos mais importantes insumos na fabricação de cerveja. Como intermediário entre as maltarias e as cervejarias, Guterres garante conseguir fazer com que parte desses volumes chegue às fábricas sem constar das notas fiscais.
Assim, segundo diz, as cervejarias poderiam, ao final do processo, vender lotes da sua produção
também sem emitir notas fiscais.
Guterres ? Eu dou um lucro extraordinário para as cervejarias, fantástico.
Investidor ? Me explica isso, por favor.
Guterres ? Se eu pegar uma carga de malte, hoje ela está em torno de 40, 42 mil reais, em reais, né?
Investidor ? Um caminhão.
Guterres ? Um caminhão, 27 toneladas. Então, essas vinte e
sete toneladas ele vai ganhar só na compra R$ 50 mil. Só na
compra, sem nota.
Investidor ? Você vende para ele sem nota.
Guterres ? Sem nota, se eu vendesse…
Investidor ? E ele… é, então…
Guterres ? Ele vai vender esse produto sem nota também.
Investidor ? Ele só vai vender cerveja sem nota.
Guterres ? Sem nota. Ou ele joga esse… ele pega esse dinheiro e joga para marketing, joga para um monte de coisa, porque ele pode esquentar esse dinheiro nessa forma. (…) Eles usam esse dinheiro no marketing, na bonificação, tem como. (…)
Investidor ? Quem são seus maiores parceiros hoje?
Guterres ? Quem compra?
Investidor ? É.
Guterres ? Os meus maiores clientes? Ah! Eu tenho desde Schincariol, Cintra, Kaiser…
Amigo Schincariol
?Ele ganha comigo, mensal, mais de um milhão de dólares?
Boa parte da conversa gravada gira em torno das operações que Guterres diz realizar para a cervejaria Schincariol. É em torno da empresa e de seu principal dirigente à época, Nelson Schincariol, que reside o maior interesse do investidor. Guterres, por sua vez, faz questão de reforçar, em vários momentos, sua proximidade com o empresário e a estreita colaboração entre ambos nos esquemas de sonegação.
Guterres (sobre a Schincariol) ? Hoje está com seis fábricas, nos próximos quatro anos ele estará com 20% (do mercado). E eu hoje sou um dos maiores colaboradores deles. Inclusive o seu Nelson Schincariol, calabrês ele.
Investidor ? Quem que é? Nelson Schincariol? Quem que é?
Guterres ? Ah, hoje é o dono. O sobrenome dele é a cerveja. (…)
Investidor ? E qual é a mágica desses caras?
Guterres ? Sonegação.
Investidor ? Mas sonegação…
Guterres ? Sonegação e cash. Nunca me pagou com cheque, nada. Só dinheiro. As outras, às vezes eles pagam com cheque pequeno, mas, 80% que eles operam é tudo dinheiro vivo, em espécie. Eu tenho problema com isso, por causa do volume de dinheiro.
Investidor ? Tem que sair com maleta.
Guterres ? É, também dar uma disfarçada, mas é complicado. (…)
Investidor ? E quanto, você está há quanto tempo com a Schincariol?
Guterres ? Schincariol, desde que ela começou.
Investidor ? Desde o começo.
Guterres ? Então tem um pilarzinho meu lá. (risos) Ele não pode me chutar porque ele ganha comigo. E ganha muito. Hoje ele ganha comigo, mensal, ele ganha mais de um milhão.
Investidor ? Quem?
Guterres ? Livrinho. O seu Nelson, dono da Schincariol.
Investidor ? Ah! Pela sonegação.
Guterres ? Pela sonegação.
Investidor ? Um milhão por mês?
Guterres ? Por mês, limpinho.
Investidor ? De dólares?
Guterres ? De dólares. (…) O movimento meu com ele, diário, é 300, 400 mil reais.
Investidor ? Isso só no malte?
Guterres ? Só no malte.
Esquema da lata
?Vendi embalagens sem nota e com a logomarca dele?
Embora seu principal negócio seja a venda de malte, Edson Guterres vangloria-se também de operar da mesma forma com outros insumos usados na produção de cerveja. Alega ter, por exemplo, boas rela-
ções na indústria de latas de alumínio. Graças a elas, relata que já efetuou operações de vendas de embalagens para a Schincariol, sempre sem nota fiscal.
Investidor ? Você entrega outros insumos.
Guterres ? (..) No ano passado eu entreguei latinha. Latinha eu entreguei sem nota também. Isso é um feito inesitável (sic) que eu tenho, consegui…
Investidor ? Conseguiu comprar sem nota?
Guterres ? Sem nota e com a logomarca dele. Agora você me explica como? É uma jogada de mestre. (…)
Investidor ? Quanto você puxou de lata, num ano, por exemplo? Qual… Esse mercado de lata, quanto dá pra puxar?
Guterres ? Esse mercado de lata? Não pode jogar… jogar muito pesado. Mas eu cheguei a puxar num ano 140, 150 mil… milhões.
Investidor ? De lata?
Guterres ? É, é volume mesmo. Divide isso aí por doze procê ver quantas caixas dá.
Vício de sonegar
?Ele não precisava mais fazer, já está grande. Acostumou?
Uma das explicações de Guterres para o sucesso de suas operações é o trânsito livre junto a Nelson Schincariol. O ?fantasma? diz ficar admirado com o fato de a empresa, mesmo depois de se tornar uma das gigantes do setor, continuar se utilizando de métodos ilegais.
Investidor ? Você conversa com ele diretamente?
Guterres ? Com ele. Os diretor fica doido. (…) Eu nunca
precisei marcar reunião com ele. Se tiver o tempo hábil ele
me atende na hora.
Investidor ? Um homem desse porte?
Guterres ? É.
Investidor ? Você está bem, hein rapaz?
Guterres ? Não preciso de crachá para entrar. Na AmBev eu
preciso, mas lá, não.
Investidor ? Ele fica aonde, em Itu?
Guterres ? Fica mais em Itu. O calabrês lá é feroz. É bom. Eu
admiro porque ele não precisava mais fazer sonegação, ele já
está grande pra caramba.
Investidor ? Mas continua fazendo?
Guterres ? Continua. Eu sempre falo pra ele: ?Você é o legítimo cara que vai com treze anos na zona e nunca esquece, sempre quer dar uma voltinha lá?. Ele acostumou.
Investidor ? Mas ele continua sonegando o quê? O que é o mais forte hoje?
Guterres ? Mas, na… Bom, ele sonega em tudo, matéria-prima, na venda, tudo.
Sem fronteiras
?A importação é normal. No porto, a gente ajeita?
Segundo Guterres, o sucesso das primeiras operações o levou a sofisticar e diversificar sua atuação, tornando-a mais segura para os clientes e mais difícil de ser detectada pela fiscalização. Parte de seus negócios, conta, era feito dentro da lei, principalmente a importação de malte. Quando a carga desembarcava no Brasil é que seu jogo começava.
Guterres ? Eu montei essa fórmula de vender matéria-prima sem nota e deu certo. Faz oito anos que eu comecei, com um saco. Hoje eu vendo, se tiver, dois, três navios, eu vendo. (…)
Investidor ? Quer dizer, além da cervejaria, o que a gente tiver você vende?
Guterres ? Vendo. (…)
Investidor ? E você está trazendo o malte sem nota?
Guterres ? Não. Trago com, eu trago importação normal.
Investidor ? Normal.
Guterres ? Chega aqui no porto, a gente ajeita as coisas. A
operação é certa, só que a gente faz errado. Chega aqui, a
gente consegue ajeitar as coisas.
Investidor ? No porto?
Guterres ? No porto.
Investidor ? Você retira sem pagar imposto?
Guterres ? Uma parte, sim. (…) Não tudo.
Investidor ? É que daí a gente… Eu poderia te fornecer muito, só que você cuidaria da chegada aqui, é isso?
Guterres ? Exato. Via rodoviário, por exemplo, dos países da América do Sul é fácil de se trazer. Outra, a gente tem outras fórmulas. O malte é feito de cevada. (…) Fiscal chega no Ministério Público ali, fala o que é? É cevada. Então você paga…
Investidor ? O que você paga no porto é bem menor.
Guterres ? (…) O valor do malte é 280 dólares. A cevada vai ser 150. Você taxa sobre esse aqui (a cevada), não sobre esse (o malte).
Investidor ? A diferença é grande.
Caso Antarctica
?Trabalhei um ano lá, fazendo sonegação?
Em vários trechos da gravação Guterres deixa claro que os esquemas de sonegação são uma prática comum no setor, envolvendo praticamente todos os fabricantes. Ele admite fazer negócios com a maior parte das pequenas cervejarias, como a Belco, dirigida por Valter Faria, um ex-distribuidor da Schincariol. Diz também que, no passado, realizou operações ilegais para a Antarctica, que mais tarde se fundiria à Brahma formando a AmBev.
Guterres ? Eu conheci o Valter (Faria) porque forneci algodão pra ele.
Investidor ? Ele mexe com isso também?
Guterres ? Mexia. Ele foi expulso do mercado. Acabou com…
(risos) O cara era escroto pra caramba no mercado de
algodão. Investidor ? É?
Guterres ? Caramba, no algodão nós jogamos pesado. (…) É sonegação violenta.(…)
Investidor ? Ele tinha algodoeira.
Guterres ? Tinha algodoeira, vendia pra DuPont, vendia pra Artex, vendia pra Hering, vendia pra todo mundo.
Investidor ? Tudo sem nota?
Guterres ? Tudo sem nota. Cheguei a passar 70, 80 caminhões por noite, só do Paraná para São Paulo. Foi aí que eu conheci. Aí ele ficou amigo de um juiz. Esse juiz que deu uma liminar pra ele, no negócio do algodão. Aí, essa liminar, eu conheci o seu Nelson, o seu Nelson tinha montado a cervejaria. Mas eu já conhecia o seu Nelson porque eu trabalhei um ano na Antarctica, fazendo sonegação.
Investidor ? Pra Antarctica?
Guterres ? É. Foi os anos que a Antarctica subiu, para dar o ?pool? para a AmBev, pra Brahma pegar ela. Foi maior… Eu falo que foi a maior incoerência que um cara fez numa empresa. Ele deu praticamente a empresa pra Brahma.
Investidor ? A Antarctica, né?
Guterres (esfregando os dedos como quem mexe em notas de dinheiro) ? Ganhou, né? Cara ganhou, e muito, que a gente sabe. Presidente, aquilo lá era uma zona.
Bancada da Ambev
?São 20, 30 deputados na mão, né??
A testemunha-chave da guerra das cervejas fala também da influência política dos fabricantes. Ele insinua que a Schincariol seria beneficiada pelo ex-governador de São Paulo, Mário Covas, e diz que a AmBev teria uma bancada cuidando de seus interesses no legislativo.
Guterres (referindo-se a Nelson Schincariol) ? Ele não pergunta da AmBev, não pergunta da Kaiser. Ele não tem medo dos outros não. Ele não tem medo da AmBev. Eu também não teria medo.
Investidor ? Que eles trabalham, acredito que trabalham dentro da linha, da legalização…
Guterres ? Não. Mais ou menos. A AmBev tem… são 20, 30 deputados na mão, né. Faz chuncho pra caramba. Conheço
todas as jogadas que eles fazem.
Investidor ? E o Valter e a Schin? Também eles fazem esse lobby?
Guterres ? Tem.
Investidor ? Quem segura pra eles em Brasília, por exemplo? Tem idéia, São Paulo?
Guterres ? Hoje, agora, não sei, porque mudou tudo, né. Agora, este ano aqui, não sei.
Investidor ? Em São Paulo…
Guterres ? Aqui em São Paulo quem segurava muito a peteca era o Covas.
Garrafa ilegal
?Tampinha e rótulo eu também compro sem nota?
A Antarctica volta a aparecer
na gravação minutos mais tarde. Questionado pelo investidor, Gu-
terres conta que comandava um esquema de sonegação na compra
de garrafas, rótulos e tampinhas
para a cervejaria.
Investidor ? Você foi funcionário da Antarctica? Foi o que entendi.
Guterres ? Fui prestador de serviço.
Investidor ? Ah, prestador de serviço.
Guterres ? Fui funcionário em termos, registrado em carteira. Me fizeram registro simbólico lá.
Investidor ? Ah, fizeram?
Guterres ? Fizeram. Eu fazia toda a parte ilegal.
Investidor ? Da Antarctica? Bom, a Antarctica cresceu muito também.
Guterres ? É. Na época, onde ela estava, estava pontuando pra caramba.
Investidor ? Você operava aonde? Rio?
Guterres ? Rio, São Paulo, no Paraná, Santa Catarina. Fazia o esquema da garrafa. Garrafa hoje não precisa fazer.
Investidor ? Qual que é o da garrafa?
Guterres ? Garrafa não se vende. Sem nota, tudo.
Investidor ? Garrafa é sem nota?
Guterres ? Tudo. O senhor não compra tampinha e rótulo. Tampinha e rótulo eu também compro sem nota.
Investidor ? Você tem fornecedor da tampinha? Isto é… tem muita gente que faz tampinha, ou não?
Guterres ? Não, só três marcas.
Investidor ? E você também…
Tudo que você pensar para cervejaria, sem nota, a gente dá um jeito.
Dinheiro a quilo
?Tem que ser pacote de dinheiro?
Em várias ocasiões durante os 162 minutos da gravação Guterres relata como recebia seus honorários pelos serviços prestados às cervejarias. Segundo ele, o modelo mais aperfeiçoado de pagamento era o da Schincariol, feito totalmente em dinheiro vivo, para não deixar rastros.
Guterres ? Eu, quanto mais fantasma eu for, melhor para mim.
Investidor ? Pra nós também.
Guterres ? Entendeu?
Investidor ? Hã, e dinheiro, só dinheiro, né? Sem negociação oficial.
Guterres ? Não.
Investidor ? Só maleta mesmo.
Guterres ? Só maleta.
Investidor ? Só maleta.
Guterres ? Estilo Schincariol.
Investidor ? Estilo Schincariol.
Guterres ? Tem que ser pacote de dinheiro.
Investidor ? Pacote. Lá eles usam pacote.
Guterres ? É quilo, quilo, lá é por quilo. Quantos quilos de
dinheiro tem aí?
Investidor ? Mas o que, eles pagam em tesouraria, é isso?
Guterres ? Tem uma sala deles, lá que… fedor de dinheiro,
não dá pra entrar.
Investidor ? Na sala?
Guterres ? Numa sala, lá é só pra pagar. (…)
Investidor ? O Nelson Schincariol é que recebe você? … Você me deve isso… É ele que recebe?
Guterres ? Não, ele nunca… ele só duas vezes veio trazer o pacote…
Investidor ? Não, eu digo, você entrega o recibo pra ele?
Guterres ? Sim, pra ele.
Investidor ? O senhor me deve tanto…
Guterres ? Exato.
Investidor ? E o assessor é que… eles são malucos, tá errado isso?
Guterres ? O recibo é incinerado na hora. Recebeu, queima, põe fogo.
Investidor ? E aí você vai pra uma salinha…
Guterres ? Salinha, recebe o dinheiro e cabou. Ele não fica com comprovante nenhum. Só comprovante na hora que recebeu. (…) Recebeu tal e tal dinheiro, toma lá, dá cá…
Investidor ? E todo mundo sabe disso lá dentro, cara?
Guterres ? Não, só alguns.
Investidor ? Que operação arriscada.
O fim do esquema
?Se esse homem morrer, eu estou f…?
Guterres via apenas um grande risco no seu negócio: a saída de
cena de seu maior cliente e principal interlocutor. Tudo, de acordo com seu relato, era tratado diretamente com Nelson Schincariol, inclusive os pagamentos que lhe eram feitos. Seu temor acabou se revelando premonitório.
Investidor ? Mas o cara que paga é alguém alto, de alto escalão?
Guterres ? Alto escalão, assessor direto do homem. Quem pega todos meus recibos é o seu Nelson. E outra, pra me pagar só com ordem dele, tudo. Eu falei: ?Se esse homem morrer, eu tô f…?
Nelson Schincariol morreu no dia 18 de agosto de 2003. Foi assassinado com três tiros quando chegava em sua casa, em Itu. A polícia afirma que as investigações estão praticamente encerradas com a prisão de seis suspeitos. O motivo do crime: a tentativa de roubo de dinheiro que o empresário manteria no cofre de casa.