Mesmo o mais sagaz adivinho teria dificuldade em vislumbrar um líder no menino tímido que vendia tapioca e amendoim na estação das barcas do Guarujá, no litoral de São Paulo. ?Ele tinha vergonha de gritar ?Olha a tapioca!? e às vezes eu dava uns cascudos?, lembra José Ferreira da Silva, o Frei Chico, mais próximo dos sete irmãos do novo presidente. Lula tinha nove anos. Há dois anos a família tinha fugido da miséria sem saída de Garanhuns, no interior de Pernambuco, e tentava encontrar esperança na pobreza dinâmica de São Paulo, que descobria sua vocação industrial. Corria o ano de 1954 e o leme da casa estava nas mãos de Eurídice Ferreira de Melo, a Dona Lindu. Em dezembro de 1952 ela vendeu tudo o que tinha por 13 contos de réis e atravessou o Brasil durante 13 dias num caminhão de pau-de-arara. Foi a primeira vez que o número 13 entrou na vida de Lula. De São Paulo Dona Lindu tomou um táxi com 11 pessoas até Santos. Lá, encontrou o marido Aristides Inácio da Silva vivendo com a prima dela, Valdomira, que tinha fugido de casa aos 15 anos e desde então desaparecera. Já tinha dois filhos com essa segunda mulher. Aristides deixara Garanhuns cinco anos antes e ficou surpreso quando viu a família no armazém onde carregava sacas de café. A primeira coisa que fez ? e Lula nunca se esqueceu disso ? foi perguntar por Lobo, o cachorro da casa que havia ficado para trás. ?Meu pai era muito ignorante. Com ele não tivemos infância. Ele batia muito?, diz Frei Chico. Lula nem gosta de falar desse pai brutal que lhe negava os afetos mais elementares. Quando Dona Lindu mudou-se com os filhos para São Paulo, em 1956, Aristides ficou definitivamente no passado.
Morreu sozinho em 1978 e foi enterrado como indigente. Ainda que se vasculhe a árvore genealógica dos 29 presidentes brasileiros, não se irá achar qualquer antecessor de Lula que tenha pés tão fundos na argamassa popular brasileira. Desde a casa de barro em Pernambuco (onde se comia apenas caldo de feijão ou
tanajura frita), passando pelo pai bígamo, e chegando à migração para São Paulo e a ascensão social pelo milagre econômico da ditadura, Lula é uma espécie de síntese do que ocorreu com as classes populares do Brasil no último meio século. Os brasileiros votaram em um político grisalho de 57 anos com gestos cuidados e linguagem estudada, mas acabaram levando ao Planalto um cidadão muito parecido com eles mesmos ? na cara, na origem, na trajetória, nos gostos e até nas emoções.

 

 

Na Vila Carioca, onde a família Silva dividia uma única casa com outras cinco famílias, Lula foi ajudante de tinturaria, engraxate e office-boy. Gostava de tomar tubaína com sanduíche de mortadela na padaria da esquina e ali mesmo, torcendo em frente à televisão, foi contagiado pelo vírus do corintianismo ? um afeto que se mostra até hoje nos lençóis e toalhas do sítio da família Silva, em Riacho Grande. ?Minha mãe é a grande heroína dessa história. Conseguiu criar oito filhos naquela situação difícil?, diz Frei Chico. Quando Lula tinha 15 anos, dona Lindu pôs-se a bater perna pelas fábricas até achar para o filho uma vaga na Parafusos Marte. Isso permitiu que ele ingressasse no curso de torneiro mecânico do Senai. ?No primeiro dia de trabalho o Lula ficou só varrendo sobras, mas na hora de ir embora lambuzou o macacão de graxa para mostrar à mãe que já era mecânico?, lembra Miguel Serrano, seu patrão na metalúrgica, hoje com 84 anos. Ao encaminhar o filho ao Senai, Dona Lindu abriu-lhe a porta de uma carreira e, sem querer, presenteou-lhe um futuro que não poderia vislumbrar em seus sonhos mais ambiciosos. Em 1980, quando ela morreu, Lula estava preso por liderar as greves do ABC. O delegado Romeu Tuma arranjou para que ele saísse da cadeia e se despedisse da mãe agonizante, pelo que Lula lhe é grato até hoje. Também por apreço à figura materna, Lula impediu que a filha Lurian fosse a televisão na eleição de 1989 para depor contra a mãe, Mirian Cordeiro, que fizera várias acusações contra Lula. ?Filha minha não vai falar mal da mãe na televisão?, descartou.

 

Muito da mentalidade e dos instintos de Lula foi formado nas fábricas e ruas enlameadas do ABC, para onde a família se mudou nos anos 60. Ali Lula experimentou alguns dos eventos mais marcantes da sua biografia. Tinha quase 20 anos quando perdeu o dedo mindinho na Metalúrgica Independência, seu segundo emprego. Um colega distraiu-se no turno da noite e soltou a prensa sobre a sua mão esquerda. Na seqüência, amargou oito meses sem trabalho. Quando finalmente conseguiu uma vaga, na Villares, estava tão sem dinheiro que levava marmita vazia para o trabalho e escondia-se dos colegas na hora do almoço. No maço de Continental sem filtro carregava bitucas apanhadas do chão. Seu companheiro nessa época era o vizinho Jacinto Ribeiro dos Santos, o Lambari. Tomavam juntos porres juvenis e freqüentavam os bailes locais, turbinados a pinga com groselha. Nada mais natural que Lula começasse a namorar Lurdes, a irmã do amigo. Foram três anos de noivado durante os quais o jovem metalúrgico comprou uma casa em Vila das Mercês e um TL azul, seu primeiro carro. O casamento foi em 1969 e Lurdes engravidou no final de 1970. Do sétimo para o oitavo mês a gravidez complicou-se e aí começou o pesadelo. Ela vomitava e o médico do sindicato dizia ser normal. Numa quinta-feira o quadro agravou-se e Lurdes foi internada. O primeiro golpe para Lula foi a notícia de que o bebê estava morto no domingo. Na segunda-feira ele foi ao hospital para enterrar o filho e encontrou também a mulher no necrotério. Lurdes tinha 21 anos. Lula entrou em depressão e só conseguiu reerguer-se mergulhando de cabeça no ativismo sindical.

Apetite. Na gravação do último programa de campanha, no dia 24 de outubro, Lula viu o irmão de Lurdes no meio da audiência e o chamou pelo antigo apelido, Lambari. ?Imagine, no meio daquela gente importante?, orgulha-se o velho amigo. Até agora o presidente eleito tem conseguido transformar-se sem perder o fio com seu passado. Continua pedindo em casa a feijoada do Demarchi ? o famoso restaurante de São Bernardo, onde jogava truco no tempo do sindicato ? e segue fã de tudo que é gorduroso, saboroso e desça bem com cerveja. Não é à toa que acomoda 90 quilos em meros 1,71.

 

 

A despeito disso tudo, Lula é outro homem. Não passou incólume pelo convívio diário com os intelectuais e políticos que o cercam desde a sua ascensão como líder sindical, nos anos 80. Não cruzou o País impunemente com suas Caravanas da Cidadania do início dos 90. Não escapou ileso da sua própria decisão de aprender e preparar-se decretada pela humilhação de 1998, associada à sua falta de escolaridade. João Felício, presidente da CUT, parece genuinamente impressionado quando descreve a forma desenvolta com que Lula trata com os empresários. ?Ele continua falando como a gente, mas tem muito mais jeito para falar com eles?, aponta. Sua mulher Marisa é uma espécie de âncora na transição entre ?nós? e ?eles?. Ela foi a primeira ascensão social de Lula, porque vinha de uma antiga família de classe média de São Bernardo. Lula pedia aos colegas que o ajudassem a identificar viúvas bonitas e a jovem Marisa caiu na armadilha quando foi atrás da pensão do marido assassinado. Ela já tinha um filho, Marcos, que hoje tem o sobrenome de Lula. Casaram-se em 1974 e tiveram outros três ? Fábio, Sandro e Luiz Cláudio ? aos quais se soma Lurian. Mas os brasileiros só descobriram há pouco que Lula já foi avô duas vezes porque ele protege ferozmente a família do assédio da imprensa. Também descobriram, nos vídeos de Duda Mendonça, algo que os que convivem com Lula sempre souberam: o homem é uma vitrine exposta de emoções. Berra quando está contrariado, fala pelos cotovelos quando está feliz e chora sem a menor vergonha quando se emociona. Na última quinta-feira, durante as gravações do programa eleitoral, Lula estava cercado por amigos de quase 40 anos e pela cúpula do PT. Estava tão feliz e arrebatado que Luiz Marinho brincava em voz alta. ?Ele só não chorou porque o Duda Mendonça não deixa?, dizia seu pupilo no sindicato do ABC. Também não havia qualquer dúvida de que o garoto de Garanhuns cairia no choro ao ser informado de que era o presidente do Brasil na noite de 27 de outubro. Dia da eleição, dia do seu aniversário.