27/02/2015 - 20:00
Um dos personagens mais conhecidos da literatura, o médico e marinheiro Lemuel Gulliver viajou por terras desconhecidas, habitadas por homens minúsculos, gigantes e cavalos que falavam. As Viagens de Gulliver foram publicadas pelo clérigo e escritor inglês Jonathan Swift, em 1735, e, desde então, não saíram do catálogo das editoras em todo o mundo. A realidade, como de hábito, é bem menos glamourosa do que a ficção. O banqueiro Stuart Gulliver, principal executivo do banco inglês HSBC, iniciou uma viagem particular em meados do ano passado.
A diferença com seu homônimo literário é que a jornada do executivo britânico o tem feito descer, cada vez mais, aos infernos, e coloca em risco sua carreira e também a perpetuidade da organização que comanda. O HSBC está enfrentando a maior ameaça à sua imagem em seus 150 anos, completados em 2015. As acusações são muitas e graves. Começaram com o vazamento de uma lista de clientes do private bank do HSBC na Suíça, em 2008, que ganhou as manchetes no início de fevereiro, a partir de uma investigação do Conselho Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ).
A lista obtida por Hervé Falciani, ex-funcionário da área de tecnologia do private suíço, demonstrou que o banco auxiliou traficantes internacionais de drogas e governantes corruptos da África e do Oriente Médio a lavar e a esconder dinheiro obtido por meios ilícitos. Não é o único problema. Em 2012, o banco foi multado por ter manipulado a Libor, a taxa interbancária do mercado financeiro londrino. Também manipulou as taxas de câmbio em operações internacionais de cartões de crédito de clientes americanos, o que o obrigou a pagar uma indenização de US$ 1,9 bilhão aos clientes lesados. Mas tem mais. Muito mais.
Os executivos do HSBC são acusados de gerir fundos de grupos sauditas, sírios e iranianos, suspeitos de ter ligações com grupos terroristas. Também estão na lista de malfeitorias a lavagem de dinheiro de cartéis mexicanos e a montagem de esquemas para auxiliar os muito ricos a pagar menos impostos, enviando seu dinheiro para a Suíça e alguns paraísos fiscais. Trata-se de uma relação de proezas capaz de fazer corar os mercadores ingleses de Hong Kong e de Xangai, que fundaram o banco em 1865, para auxiliar a gerir os vultuosos fundos do tráfico de ópio da Índia para a China.
No entanto, se o banco afirma que vem tentando melhorar suas práticas, os funcionários do HSBC sempre poderão dizer que seguiram o exemplo de cima. Gulliver (o Stuart, não o Lemuel) fez seu próprio dinheiro viajar bastante para garantir sua privacidade. Cerca de 7,6 milhões de libras (R$ 34 milhões) em bônus pagos a ele em 2014 foram recebidos em nome de uma empresa de participações no Panamá, e enviados para a filial suíça do banco. O executivo comentou o movimento na quarta-feira 25, durante uma audiência na Comissão do Tesouro do Parlamento inglês, dois dias depois de admitir que as práticas do banco no passado eram “fonte de vergonha” para a direção atual.
Gulliver disse que a estratégia não visou evitar os impostos. Segundo ele, o sistema usado nos escritórios de Hong Kong, onde ele trabalhava, e na Suíça, onde investia seu dinheiro, permitia que os funcionários do banco bisbilhotassem as contas uns dos outros, e ele quis preservar sua privacidade. “É simples”, viajou Gulliver. “Colocar o dinheiro na Suíça me protege (da curiosidade) dos funcionários de Hong Kong, e colocar meu dinheiro no Panamá me protege (da curiosidade) dos funcionários da Suíça.” A intenção, segundo a cândida explicação, foi a melhor possível: evitar constrangimentos.
“Mas o que interessa é que eu paguei todos os impostos devidos pelos cidadãos ingleses que têm dinheiro no exterior”, disse ele à Comissão. Ah, bom. Douglas Flint, presidente do Conselho de Administração do HSBC, foi ouvido na mesma ocasião e confessou estar adequadamente arrependido, como é típico de um gentleman. “Essa é uma lista terrível, que nos cobre de vergonha”, disse Flint, jurando estar constrangido pelo que chamou de “estrago horrível para a reputação” do banco. “Assumo a minha parte da responsabilidade.”
Porém, ao ser questionado por Andrew Tyrie, presidente da Comissão, sobre quem deveria ser punido pelas malfeitorias suíças, Flint não titubeou em dizer que essa parte da responsabilidade não era dele. Embora fosse diretor-financeiro global do HSBC na época em que as evasões fiscais aconteceram, Flint negou-se a assumir qualquer culpa. Os principais responsáveis, afirmou, são os gestores locais que foram acobertados durante anos pelas regras de sigilo bancário locais. Entre eles, dois executivos do banco, Chris Meares e Clive Bannister.
“Eles certamente tinham responsabilidade sobre o que se passou durante a gestão deles no private bank.” Conhecidos por sua fleugma, mesmo os súditos de Sua Majestade perderam a paciência. As declarações de Flint enfureceram Tyrie, que lembrou que o HSBC não estava enfrentando críticas apenas pela conduta da filial suíça, mas também pela manipulação da Libor, por lavagem de dinheiro e ainda por envolvimento em várias ações judiciais coletivas relacionadas à fraude do gestor de fundos americano Bernard Madoff, que montou a maior pirâmide financeira da história dos Estados Unidos, provocando perdas de US$ 18 bilhões aos investidores.
O parlamentar não foi o único a estrilar. Ken Macdonald, ex-diretor da Procuradoria britânica, afirmou no início da semana que há evidências suficientes de que o banco conspirou para fraudar as autoridades fiscais da Inglaterra. Se partir para a investigação, o Fisco britânico estará em ampla e boa companhia. Além do processo nos Estados Unidos, que o obrigou a pagar US$ 1,9 bilhão em indenizações, o HSBC está sendo interpelado por autoridades em 13 países, entre eles a Bélgica e a Argentina, e outros governos devem passar a olhar para os números.
PROBLEMAS BRASILEIROS O integrante mais recente dessa lista é o Brasil. Na noite da quinta-feira 26, o senador Renan Calheiros (PMDB-AL), presidente do Senado, decidiu a favor da instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), proposta pelo senador Randolfe Rodrigues (PSOL – AP), para investigar o caso. A leitura do requerimento da CPI está agendada para a terça-feira 3. São necessárias as assinaturas de 27 senadores para garantir a instalação. “A partir da leitura, haverá um prazo até a meia-noite para a inclusão ou para a retirada de assinaturas”, disse Calheiros ao blog do jornalista Fernando Rodrigues, um dos membros do ICIJ no Brasil.
“Se um número suficiente permanecer, a CPI será instalada. É um assunto importante.” Se aprovada, a investigação chega no pior momento possível para o banco, que desembarcou no Brasil em 1997, ao comprar o que sobrou do finado Bamerindus. Independentemente dos problemas envolvendo a matriz, o HSBC encontra-se em uma situação bastante delicada por aqui. A subsidiária ainda não divulgou os resultados para 2014, mas os números antecipados por Londres indicam que registrou um prejuízo antes dos impostos de US$ 247 milhões (R$ 656 milhões) no ano passado, após ter lucrado US$ 351 milhões (R$ 822 milhões) em 2013.
Foi o único revés na região, e o primeiro vermelho desde 2012. “As receitas de serviços diminuíram bastante no Brasil devido à forte concorrência, que comprimiu as taxas”, informou o banco em seu relatório. O ano passado não foi exatamente fácil para os bancos no País. No entanto, das 18 instituições financeiras que já divulgaram seus resultados, apenas o HSBC e o mineiro Mercantil do Brasil anunciaram prejuízos. Segundo os especialistas, o fraco desempenho do HSBC pode ser explicado pelo seu posicionamento no mercado. Mesmo fechando 21 agências no ano passado, ele ainda possui 854 unidades, segundo o Banco Central (BC).
É uma estrutura cara, mas insuficiente para competir com os gigantes, como Banco do Brasil, Bradesco e Itaú Unibanco. Dentre os concorrentes de primeira linha, o espanhol Santander é o que tem a menor rede. São 2.632 agências. Mesmo assim, é mais que o triplo do britânico. Isso eleva os custos do HSBC e dificulta seu crescimento. Não por acaso, o que se nota ao longo dos últimos seis anos é um gradativo encolhimento das atividades. De acordo ocom o BC, em dezembro de 2008, o banco detinha 3,4% dos ativos totais do sistema financeiro, e esse percentual havia caído para 2,4% no fim do primeiro semestre de 2014.
No caso dos depósitos totais, que indicam quanto dinheiro o banco é capaz de captar, a queda foi de 5,1%, em 2008, para 3%, em 2014. Se o presente já é complicado, complicadíssimo, as perspectivas para o futuro também não são boas. Desde sua chegada, o HSBC notabilizou-se por derrapadas, algumas folclóricas. Um exemplo foi um comunicado de Michael Geoghegan, seu primeiro CEO no Brasil. Ao lado de recomendações úteis como indicar os assuntos a serem tratados em cada reunião para otimizar o tempo, o memorando também recomendava que os bancários tomassem banho regularmente e usassem roupas limpas para comparecer ao trabalho.
A dificuldade nas relações com os funcionários amainou, mas não totalmente. Em fevereiro do ano passado, o banco foi condenado a pagar uma indenização coletiva de R$ 67,5 milhões por espionar funcionários do Paraná que haviam sido afastados para tratamento de saúde. Desde que chegou, o banco fez algumas aquisições, como a do Lloyds, em 2003, mas não foi capaz de manter um crescimento sustentável. Daí, os rumores cada vez mais fortes de que as operações no Brasil podem ser vendidas. Desde 2008, os principais bancos brasileiros – Bradesco e Itaú Unibanco – já entabularam negociações com os ingleses, esbarrando sempre na questão do preço.
No entanto, as atribulações do banco na Europa e o momento do mercado internacional podem mudar esse cenário. Atualmente, os acionistas em todo o mundo têm preferido reduzir sua exposição aos solavancos dos países emergentes, e isso inclui o Brasil. No caso do HSBC, colocar alguns bilhões de dólares no bolso e livrar-se da operação brasileira, algo impensável há dois anos, passa a fazer cada vez mais sentido. O próprio Gulliver afirmou na segunda-feira 23, ao comentar os resultados, que o retorno das operações no Brasil, no México e nos Estados Unidos estava aquém do esperado e abaixo dos números na Ásia.
“Precisamos de uma reviravolta, ou então teremos de pensar em soluções mais extremas para esses mercados”, disse ele. Para bom entendedor: venda. As maiores sinergias ocorreriam em um negócio envolvendo o espanhol Santander. Unidos, os dois bancos teriam uma rede de 3.485 agências, maior que a da Caixa Econômica Federal. Além disso, o HSBC herdou do Bamerindus a função de banco do Estado de Mato Grosso do Sul, o que lhe garantiu uma carteira quase cativa de clientes do agronegócio, setor considerado estratégico pelo Santander.
Os entendimentos seriam facilitados pela presença do executivo Conrado Engel na diretoria do Santander. Engel foi antecessor do atual presidente do HSBC, André Brandão, e conhece como poucos os pontos fortes e fracos do antigo empregador. Segundo os banqueiros de investimento, não há, neste momento, tratativas em andamento, mas isso pode mudar – e depressa. Procurados, Santander, Bradesco e Itaú Unibanco não comentaram o assunto. O HSBC não concedeu entrevista.
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