06/11/2020 - 14:08
Há pouco mais de 20 anos fui convidado a organizar um Centro de Humanidades numa Escola de Medicina. Estávamos na virada do milênio, e se a aplicação de novas tecnologias científicas já estava consolidada como recurso para o progresso da saúde, começava-se, por outro lado, a considerar o quão prejudicial essa hegemonia técnico-científica poderia ser para dimensão humana da relação médico-paciente.
Nesse contexto, iniciou-se um debate sobre a problemática da desumanização versus humanização da saúde no Brasil. Iniciativas que mais tarde confluiriam na Política Nacional de Humanização começavam a ser testadas principalmente em hospitais públicos, impulsionadas por planos governamentais que buscavam melhorar indicadores sociais na saúde.
Qual não foi a surpresa de alguns gestores ao notarem, após meses de experiência piloto com programas de humanização, que o efeito atingido não só ficava aquém do esperado, como, em muitos casos, provocava reações adversas. Notava-se, por exemplo, até certa resistência por parte de alguns colaboradores em participar dos treinamentos, além de uma visível indisposição frente à palavra “humanização”. Desconcertados, os gestores recorreram às instâncias universitárias a fim de compreenderem o fenômeno.
Como começava eu a ser reconhecido por trabalhos de pesquisa qualitativa, sobretudo centrados na coleta e análise de narrativas por meio da metodologia de História Oral de Vida, fui convidado a participar desse esforço compreensivo demandado pelo Hospital Universitário da instituição onde até hoje trabalho. E, assim, utilizando-me de abordagens que privilegiavam a vivência dos trabalhadores, descobri coisas muito significativas. A mais gráfica delas emergiu da narrativa de um médico, que, em seu depoimento, denunciou que “a humanização causava estrabismo”.
Diante da minha perplexidade, o doutor me explicou que, pouco antes do início do programa de humanização, uma grande mudança havia ocorrido no Hospital: a informatização dos protocolos e a aplicação de guidelines eletrônicos, para facilitar o procedimento de consulta e diminuir sua duração, com correspondente aumento de eficácia no diagnóstico. “Assim”, contava-me o médico, “entre nós e os pacientes surgiu a tela do computador, que indica a próxima pergunta a ser feita e o caminho a ser percorrido na estruturação do histórico clínico do paciente. Alguns meses atrás, entretanto, começamos a receber o treinamento dos programas de humanização, nos quais se enfatizava a importância não apenas de chamar o paciente pelo nome, como também a de olhar em seus olhos durante o procedimento clínico. Dessa forma, obrigados a olhar para o computador e para os olhos do paciente ao mesmo tempo, desenvolvemos um certo tipo de estrabismo.”
De modo irônico, esse trabalhador da saúde dava a imagem a partir da qual pude elaborar minha interpretação a respeito da humanização nas organizações. Ela me possibilitou perceber que a ineficácia da abordagem procede de um equívoco antropológico.
Acostumados a identificar na formação profissional um processo de treinamento que visa o desenvolvimento de competências e habilidades técnicas, acreditou-se que a implementação de comportamentos humanizados poderiam ser incutidos de forma semelhante. Esquecidos de que somos diferentes das coisas que criamos, passamos a acreditar que funcionamos como nossos computadores, que podem ser programados para processar tarefas específicas. Aliás, não deixa de ser eloquente o fato de as propostas de humanização terem sido denominadas “programas”.
Montesquieu definia a humanização como a ampliação da esfera da presença do ser; processo que envolve, portanto, todas as dimensões do ser humano, e não apenas o cognitivo ou o comportamental. Nesse sentido, a humanização deve ser entendida como resultado de uma experiência que abarca as três dimensões que, segundo Aristóteles, caracterizam o humano: afeto, inteligência e vontade.
Humanização tem a ver com reconhecimento daquilo que é próprio do humano – reconhecimento este que advém da dimensão do sentimento e que qualifica a razão, mobilizando a vontade. Por isso, penso que uma abordagem meramente técnica, cognitiva e comportamental nunca produzirá um efeito genuinamente humanizador; nessa perspectiva, ela pode apenas gerar “estrabismo funcional”.
Num momento em que a humanização desponta com relevância no cenário corporativo, refletir sobre os fundamentos antropológicos dos projetos propostos torna-se essencial. Se não quisermos que a humanização se reduza à mera retórica – ou, pior, que gere reações adversas -, torna-se necessário ir além de uma visão tecnicista e instrumental.
A humanização exige um olhar humanístico, que abarca a totalidade do humano, levando em conta suas complexidades e contrariedades. Só esse olhar amplo e compreensivo pode nos preservar de uma “humanização estrábica”.