17/09/2003 - 7:00
A primeira vez que Damião Garcia ouviu a palavra Kalunga foi na casa de um amigo. Esse era o nome do cachorro, que Garcia jura ser o mais inteligente que conheceu em seus 73 anos de vida. Mais tarde, descobriu-se que Kalunga era também o nome de uma tribo africana. O fato é que o nome estranho transformou-se numa marca forte no varejo. A Kalunga tem 27 lojas e é hoje a maior rede de papelaria, material de escritório e informática do Brasil. A empresa, que começou na década de 70 como uma papelaria de bairro em São Paulo, vive agora uma nova fase: vai se tornar uma S/A dentro de alguns meses, profissionalizar sua gestão e inaugurar no mínimo 40 lojas nos próximos quatro anos nas principais capitais brasileiras. ?Se dependesse só de mim, a Kalunga teria o dobro do tamanho que tem hoje. No varejo, difícil é abrir a primeira loja. Depois fica tudo mais fácil?, diz Garcia, presidente da companhia.
O fundador tem características típicas de um empreendedor. É auto-confiante e visionário, mas ao contrário de boa parte dos empresários, começou a delegar o comando desde muito cedo. À medida que cada um dos seus cinco filhos ia completando 18 anos, Garcia dava algum cargo de direção e os presenteava com ações da empresa, com direito a voto. As idéias do patriarca, é claro, foram contrariadas algumas vezes, mas foi graças a esse modelo democrático que ele pôde se afastar do dia-a-dia da empresa e mostrar aos filhos que a Kalunga podia sobreviver sem o fundador. É daí que vem a necessidade de profissionalizar a gestão e transformar a empresa em uma S/A. ?Sempre fizemos tudo do nosso jeito e chega uma hora em que é preciso deixar que a empresa ande com as próprias pernas. Essa é a minha luta há dez anos?, diz Garcia, que este ano abriu mão de parte de suas ações.
O primeiro passo nesse sentido será a criação de um conselho de gestão com profissionais da casa e a contratação de diretores para as áreas de logística e expansão. ?A idéia é descentralizar ainda mais a gestão. As decisões da empresa estão nas mãos só de duas pessoas hoje em dia?, explica Roberto Garcia, o filho mais novo do fundador, que dirige a Kalunga junto com Paulo ? os outros três do clã não têm mais participação na empresa e tocam negócios próprios. A família também contratou a consultoria Pricewaterhouse para ajudá-la a colocar em prática todas essas mudanças. O trabalho ainda não terminou, mas já foi possível identificar alguns erros e acertos da Kalunga nos seus trinta anos de história. A sua maior falha foi não ter dado a devida atenção aos clientes corporativos e ao comércio eletrônico, áreas que terão prioridade daqui para frente. Juntas, elas não representam nem 7% do faturamento da rede. A boa notícia é que o modelo de negócios e de gestão ?inventado? por Garcia foi aprovado pelos especialistas. Quem vê de fora também concorda. ?A Kalunga é um dos melhores exemplos de que é possível se dar bem em um mercado tão pulverizado como esse. Desde o começo o mérito deles foi ter percebido que era necessário ter uma variedade grande de produtos?, afirma Eugênio Foganholo, sócio da Mixxer Consultoria. As lojas oferecem hoje cerca de 10 mil itens, que vão de canetas a impressoras. Garcia não revela o faturamento, mas a rede é o terceiro maior distribuidor de cartuchos HP do Brasil, vende 1,2 milhão de canetas Bic e 1.200 toneladas de papel por mês. O giro é tão grande que a Kalunga acabou ganhando fama de ter preço baixo.
A sensação de Garcia é de missão cumprida. Ele ainda vai ao escritório quase todos os dias, mas dedica boa parte do seu tempo ao futebol. Sua grande paixão sempre foi o Corinthians ? a Kalunga patrocinou o time paulistano de 1983 a 1995 ? mas no último ano concentrou toda a atenção no Noroeste de Bauru, sua cidade natal. ?Quero tirar o clube do buraco?, conta. Filho de imigrante espanhol, ele começou a trabalhar logo cedo: aos 10 anos, foi office-boy; com 20 e poucos, caixeiro viajante. Trabalhava vendendo material escolar da Tilibra de norte a sul do País. Apesar de viver em uma casa confortável, ter motorista e viajar para o exterior de vez em quando, Garcia não perdeu seu jeito simples de homem do interior. Ainda hoje faz questão da feijoada aos sábados, do estádio aos domingos, do baralho com os amigos às quartas-feiras e não sai de casa sem antes fazer uma oração. O santo dele deve ser mesmo forte.