30/04/2003 - 7:00
Caneta é substantivo feminino. A definição gramatical soa fria, ligeiramente distante, até se atravessar o portão de número 100 da Hellgreendweg Strasse, em Hamburgo, na Alemanha. Na fábrica asséptica, quase imaculada, há apenas mulheres. As operárias lapidam, com cuidado cirúrgico, as peças de uma caneta Montblanc ? 3 milhões delas deixam a linha de montagem todos os anos. As moças cuidam de um dos ícones universais do luxo, criado em 1906, como quem manipula tubos de ensaio de um laboratório. ?Elas são mais sensíveis e delicadas que os homens?, diz a diretora Barbara Lohrie. Suavemente, a Montblanc reescreveu sua história. No rastro das penas e esferográficas, na década de 80 do século passado, brotaram relógios, acessórios de couro e jóias. Todos com o mesmo pedigree lendário. Hoje, o império fatura US$ 400 milhões.
Um chavão freqüentemente utilizado diz que por trás de todo grande homem existe uma grande mulher. Na Montblanc, como que a subvertê-lo, por trás de grandes mulheres há um grande homem. São elas que dizem isso. Um senhor de 56 anos e 1,65 metro, cabelos grisalhos, queixo quadrado, barba rala e uma personalidade forte é o comandante da empreitada. Norbert Platt, o presidente mundial da marca, moldou o destino da Montblanc em apenas 10 anos ? fez com uma caneta o que Lee Iaccoca realizou na Chrysler com automóveis. Uma revolução industrial e de gerência. Recebeu críticas, acumulou inimigos, mas triunfou. Alcançou o posto mais alto no fim dos anos 80, quando faturava US$ 30 milhões. Multiplicou a receita em 14 vezes e a pôs entre as grandes do mercado. Platt quer mais. ?Em outubro vamos abrir outra loja em São Paulo?, disse Platt à DINHEIRO, em meio ao alvoroço do Salão Internacional de Alta Relojoaria, em Genebra. É um investimento previsto em US$ 1 milhão. Em oito anos, a Montblanc montou uma rede de seis lojas no Brasil. São três franquias e três da própria grife.
Valores eternos. Platt é visto como um mago do luxo. Tinha uma missão complicada. Ampliar os negócios de uma empresa que sempre foi sinônimo de estilo mas sofria uma crise de identidade com a explosão dos microcomputadores. A informática incomodava o modo milenar de escrever. ?Mas ainda assim as pessoas, mergulhadas na tecnologia, desejam resgatar os valores antigos, eternos?, diz Platt. ?Saber que um produto foi feito a mão, e é único, faz toda diferença?. O executivo apegou-se a esse mote e foi em frente. Do total das vendas, 60% eram de produtos baratos que custavam até 10 euros. ?Quando assumi a presidência da empresa parei e me perguntei, qual é o nosso verdadeiro negócio??, lembra Platt. A resposta veio rápida. ?Era o luxo e não o popular.?
A linha mais simples foi interrompida. Permaneceu apenas a família da refinada Meisterstuck, cujo design é o mesmo desde 1924. Os pontos-de-venda também foram alterados. Nada de papelarias. A partir daquele momento quem pretendesse encontrar algum produto da Montblanc deveria dirigir-se a joalherias. O passo seguinte foi a montagem das chamadas butiques Montblanc. A primeira, de uma série de 200, foi aberta em Hong Kong em 1992. O Brasil também ganhou destaque. Antes mesmo de Nova York, São Paulo já abria suas portas para o seleto grupo dos amantes da lenda.
De pai para filho. O público queria novos produtos que não os afastasse do fascínio da marca. Platt tratou de atendê-lo. Em 1993, a Montblanc comprou uma tradicional fábrica de couro em Offenbach, na Alemanha. Começou a fazer agendas e pastas executivas. O material: couro de carneiro. Os animais são confinados em pastos onde não há arames que possam machucá-los. Em 1997 inaugurou-se a linha de relógios. A Montblanc faz parte do grupo Richmond, que abriga também nomes como Cartier, Audemars Piguet e Baume & Mercier. Navegava, portanto, em território seguro. A fábrica foi construída em um castelo, em Le Locle, na Suíça ? coincidentemente erguido no mesmo ano, 1906, em que nasceu a Montblanc. A ampliação de produtos mexeu com o portfólio da empresa. Do total das vendas da companhia, 45% vem das canetas, 30% dos relógios, 20% do couro e 5% de jóias e chaveiros. O número de produtos saltou de 40 para 2 mil. ?Tivemos tranqüilidade em partir para outras áreas porque éramos líderes em canetas?, diz Platt. É uma atitude aplaudida por quem trabalha com a permanência de marcas no imaginário dos consumidores. ?Eles souberam utilizar inteligentemente a fama que tinham nas canetas de modo a transferi-la a outros produtos?, diz Eduardo Tomiya, diretor para a América Latina da consultoria Interbrand. O desejo, na verdade, é impor a todo o catálogo um comportamento atavicamente ligado à caneta. ?Você nunca tem uma Montblanc, ela passa de pai para filho?, diz Freddy Rabbat, diretor do braço brasileiro.
Os funcionários em Hamburgo e Le Locle, 64 pessoas, sentem, no cotidiano, o que é trabalhar com um mito. Luvas de borracha são obrigatórias. Em todas as fases de fabricação há um toque artesanal. Para trabalhar na linha de montagem é preciso passar por treinamentos que duram um ano. Uma caneta é trabalhada, do início da cadeia de produção até a fase final, ao longo de seis meses. Com os relógios é semelhante. Da planta de Le Locle saem 120 mil exemplares por ano. O tempo estimado na construção de um único tic-tac da Montblanc é de nove meses ? a Swatch demora 15 dias para prepará-lo. Mesmo com toda a excelência em cada produto manufaturado, há quem duvide da capacidade da Montblanc em manter o nome em alta. ?Existem vários exemplos de que a diversificação de produtos dá errado?, diz José Roberto Martins, especializado em avaliação de marcas. Platt tem uma resposta na ponta da língua: ?Se tivesse falhado certamente não estaria aqui para escrever essa história?.
A POUSADA DOS VIPS NO CASTELO SUÍÇO |
A Montblanc sabe que seus clientes cobiçam um modo de vida requintado como o da marca alemã. Os executivos que desembarcam em Le Locle, na Suíça, para conhecer a fábrica de relógios têm tratamento vip. São hospedados no próprio castelo em que funciona a linha de montagem. No andar de baixo, uma dezena de pessoas burila as peças. No andar de cima há três quartos de hóspedes. As suítes são decoradas em estilo art nouveau com pitadas de modernismo. Há um mordomo exclusivo para os convidados. Da janela dos quartos, avista-se os Alpes suíços. |