De memória, o ministro Pedro Malan recitou um verso de Os Lusíadas: ?A disciplina, senhor, não se aprende na fantasia, sonhando, imaginando ou estudando, senão vendo, tratando e pelejando?. Explicava, a pedido de DINHEIRO, como Mário Covas, 70, conseguiu, acima das críticas, deixar uma lição de economia sem jamais ter sido economista. ?O legado de austeridade fiscal e desenvolvimento econômico de Covas foi construído porque, à parte a teoria, ele entendia na prática as leis da vida?. Como Malan, vários ministros, grandes empresários e economistas reconheciam no governador paulista uma referência não apenas política, que agora vira símbolo. Ele ergueu uma obra econômica sustentada em quatros pilares: austeridade administrativa, preocupação social, crença no capitalismo e um revolucionário plano de privatizações, que virou modelo nacional.

No primeiro dia de seu primeiro mandato, em 1997, Covas determinou que nenhum secretário estava autorizado a gastar além da arrecadação do Estado. Lançava, sem saber, naquele instante, as bases da Lei de Responsabilidade Fiscal, aprovada somente no ano passado. ?Na hora, ninguém entendeu muito bem o que ele queria dizer, mas à medida em que os pedidos de verbas extras não eram aprovados, cada secretário entendeu que o chefe falava a sério?, diz o secretário estadual da Fazenda, Fernando Dall?Acqua. Provando que austeridade era um dogma, Covas pôde, ele próprio, abrir torneiras para o social. Quando um corte orçamentário acabou com um programa de distribuição gratuita de leite, Covas deu 15 minutos para que um técnico da Fazenda cruzasse a cidade até seu gabinete no palácio, um percurso que pode levar mais de um hora. ?O senhor saiba que por detrás dos seus números há gente. Corte em outro lugar. O programa do leite continua?, determinou. Aos professores, dobrou o piso salarial da categoria.

Nascido em família de classe média, Covas jamais nutriu diferenças ideológicas com o sistema capitalista. Em 1989, candidato a presidente, seu discurso ?Choque de Capitalismo? não o catapultou à Presidência, apesar de levantar seu nome nas pesquisas, mas deixou plantadas as bases para o amplo programa de privatizações executado, mais tarde, por seu correligionário Fernando Henrique. Em São Paulo, ao determinar a privatização da Cesp, enxugou a empresa com o corte de 17 mil empregos. Depois, escolheu o modelo de ?fatiamento?, com vendas separadas das áreas de geração, transmissão e distribuição. Enfrentou, é claro, a ira de técnicos e sindicalistas, mas arrecadou bilhões que ajudaram a zerar, logo em seu terceiro ano de gestão, o déficit de R$ 3,5 bilhões que encontrou ao assumir o governo. Com um plano de demissões voluntárias, livrou o Estado de mais de 100 mil funcionários.

Bonachão em família e cultor de um estilo político duro e seco, Covas debruçou-se pessoalmente sobre a renegociação da dívida do Estado e do Banespa com a União. Uma conta no vermelho de R$ 16 bilhões. ?Vivemos durante a renegociação um processo longo e complexo, marcado por vários momentos de conflitos e tensão?, lembra Pedro Parente, atual chefe de Gabinete da Presidência. Em 1997, Malan e Parente foram escalados para fazer, pela União, o equacionamento das dívidas. O primeiro encontro, logo em janeiro, foi um desastre. Furioso, dizendo impropérios em alto e bom som, Covas saiu da sala de Malan, no Ministério da Fazenda, direto ao Palácio do Planalto, para reclamar da falta de flexibilidade do ministro. As conversas seguintes nunca foram tranqüilas. ?Discutimos ao longo de dois anos, mas ao final o modelo de renegociação da dívida paulista serviu de exemplo para o resto do País?, diz Parente.

Das finanças públicas de São Paulo, o governador falecido na quarta-feira, 7, era seu maior fiscal. Considerava sua bússola o fluxo de caixa do Estado, documento que mandou a Secretaria da Fazenda confeccionar, e com o qual acompanhava diariamente os compromissos a pagar e as receitas a receber. Dela, guardava segredo de seus auxiliares quando o superávit batia o déficit. Com estes métodos, deixou R$ 7 bilhões em caixa para seu sucessor Geraldo Alckmin (leia texto nesta página), para investimentos diretos em obras. ?O Covas que eu conheci deixou um exemplo de político agudo, racional e muitíssimo preparado para o debate?, atesta o ministro José Serra, da Saúde.

No governo, Covas mandou recadastrar todo o funcionalismo público, acabou logo no primeiro dia com o Baneser, braço do Banespa que seus antecessores usavam para contratar funcionários com altos salários. Com ele, não houve secretário forte. Todos obedeciam a voz grave do governador. No gabinete, começava um despacho com o titular da Saúde, chamava no meio da conversa o responsável pelos Transportes, agregava o da Segurança. Todos à volta de sua mesa quadrada, computador ligado, assessores em entra-e-sai. Nunca faltaram tapas na mesa, palavrões, expulsões do recinto para, minutos depois, noutro tom, convocar de volta o defenestrado. ?Sabíamos que eram explosões de amor pelo trabalho?, lembra um integrante do primeiro escalão do governo paulista.

Depois de acertar as contas estaduais, partiu para um segundo mandato contrariando ordens de assessores e marqueteiros. ?Covas era imercadológico?, reconhece Nizan Guanaes, responsável pela última campanha de Fernando Henrique. ?Não dava para ser marqueteado.? Foi para a rua, enfrentou greves, protestos, a direita e a esquerda. Tornou-se o único governador do Estado a se reeleger. ? Ele vai fazer uma falta imensa?, definiu o presidente Fernando Henrique.

A HORA E A VEZ DE GERALDO ALCKMIN

  
  

A mesa de trabalho de Geraldo Alckmin, no Palácio dos Bandeirantes, é antiga, pesada e dura. Sua cadeira é do mesmo padrão. Não há sequer almofada. A porta do gabinete se abre e Alckmin pode ser visto diretamente, sem cantos ou biombos a conceder-lhe tempo de se aprumar. Desnecessário. ?Sou perfeccionista, adoro trabalhar?, diz ele.

Ex-prefeito da pequena Pindamonhangaba, Alckmin nunca fez política na capital paulista, até compor a chapa de Mário Covas, em 1996. Discreto, jamais fez sombra ao chefe. No governo, nunca brigou por espaços, nem tentou nomear secretários. Foi candidato a prefeito em 2000 e por pouco não chegou ao segundo turno. Ganhou pontos entre os tucanos pelo discurso avesso a inflamações. Nas próximas eleições, se não houver óbice legal, a vaga é dele. Na ausência de Covas, abatido pela doença, enfrentou a maior rebelião penitenciária da história do País, mês passado. Foi firme sem precisar dar ordem de atirar contra os amotinados. Demonstrou autoridade. Agora, com R$ 7 bilhões em caixa para investimentos, pode inaugurar 20 obras no primeiro semestre. De início, vai manter o mesmo secretariado.