19/02/2009 - 7:00
O CLÃ BIAGI: uma foto da família em 1964, quando o pai, Maurílio, já era um dos grandes usineiros do País
RODEADO POR CENtenas de livros, na sua biblioteca na Fazenda Cravinhos, próxima a Ribeirão Preto, meca do etanol no Brasil, o empresário Luiz Lacerda Biagi dá os últimos retoques num pequeno romance. O título da obra, com passagens autobiográficas, será No fim, não era noite. Ao mesmo tempo, ele lidera seus irmãos na maior batalha de sua vida empresarial. O objetivo é também encontrar uma luz na escuridão. Controladores da Santelisa Vale, o segundo maior grupo nacional de açúcar e álcool, os Biagi, que se confundem com a história do setor sucroalcooleiro no País, administram uma dívida de R$ 2,8 bilhões – superior ao valor da própria empresa. Estão sendo pressionados pelos bancos, começaram a atrasar pagamentos aos fornecedores e necessitam com urgência de uma nova injeção de capital para manter as usinas em operação durante a safra de cana que será colhida nos próximos meses. Além disso, uma boa parte do patrimônio pessoal da família foi dada em garantia aos credores – os principais são Bradesco, Itaú-BBA, Santander e Votorantim. Apesar dos problemas, Luiz mantém a calma e a serenidade. Aos amigos mais próximos, tem citado uma frase clássica do escritor norte-americano Mark Twain. “Os rumores sobre nossa morte foram claramente exagerados”, tem dito. Seu irmão André, que hoje preside o conselho de administração da empresa, tem seguido a mesma linha. “Nossos ativos são bons, rentáveis e não há razões para duvidar de que o grupo encontrará a melhor solução”, disse ele à DINHEIRO.
Depois de formar a gigante Santelisa Vale, LUIZ BIAGI lidera os irmãos no esforço para encontrar um novo sócio para o grupo
Afastado dos irmãos, o primogênito MAURÍLIO BIAGI não se endividou e hoje comanda a Moema, com cinco usinas em São Paulo
A história tem também um forte componente emocional. A CRISE COMEÇOU PORQUE OS BIAGI NÃO ACEITARAM QUE RUBENS OMETTO COMPRASSE uma de suas usinas mais valiosas
Os dois vêm de uma família onde o açúcar corre nas veias. O avô, o imigrante italiano Pedro Biagi, fundou, em 1931, a Usina da Pedra, no interior de São Paulo. O pai, Maurílio Biagi, foi o principal empreendedor da época de ouro do Pró-Álcool, quando os militares desenvolveram o programa nacional de biocombustíveis para enfrentar o primeiro choque do petróleo. Mais do que um simples usineiro, Maurílio foi também um industrial inovador. Criou empresas como a Zanini e a Sermatech, que construíram e forneceram equipamentos para várias das usinas que existem hoje no Brasil. Seus filhos tornaram-se os maiores engarrafadores da Coca-Cola no interior paulista e no triângulo mineiro – Luiz Biagi foi também um dos criadores da cervejaria Kaiser. E foi justamente a fortuna e a fama dos Biagi que deram a Ribeirão Preto o apelido de “Califórnia brasileira”. É por isso que a fotografia atual do grupo é tão surpreendente – difícil até de acreditar. Em meio à crise, a família contratou dois especialistas em reestruturações empresariais. O consultor Luiz Kauffmann, ex-Aracruz e ex-Medial, será o novo presidente do conselho. A interlocutores próximos, ele disse que a situação é “plenamente administrável”. O outro bombeiro será o executivo André Mastrobuono, que deixou a presidência da Parmalat na semana passada para assumir o comando da Santelisa Vale. Os dois têm larga experiência em renegociações de dívida e, além disso, o time conta com o apoio da consultoria Angra Partners, que tem bom trânsito junto aos fundos de pensão estatais.
Com uma capacidade para moer 18 milhões de toneladas de cana e uma receita anual de R$ 1,8 bilhão, a Santelisa Vale é o segundo maior grupo de açúcar e álcool do País. Perde apenas para a Cosan, de Rubens Ometto, que lidera o setor com uma capacidade produtiva duas vezes maior. E foi justamente essa rivalidade entre as duas maiores famílias do etanol que deu origem aos problemas financeiros atuais. Em 2006, Binho, como Rubens Ometto é chamado, fez o primeiro lançamento de ações do setor sucroalcooleiro. Seu IPO foi um sucesso estrondoso e mudou a realidade do setor. O etanol virou a grande vedete da economia nacional e vários usineiros passaram a vislumbrar uma nova realidade de preços para os seus ativos. Foi exatamente o que aconteceu na Vale do Rosário, uma usina onde Luiz Biagi era o maior acionista, com 11% das ações. Só que ali havia outros 108 sócios, herdeiros das quatro famílias que fundaram a empresa. E alguns, liderados por Pedro Camargo Neto, atual presidente da Abipecs, a associação dos exportadores de carne suína, decidiram aproveitar o bom momento para vender suas posições. Como as ações da Vale do Rosário não tinham liquidez, Camargo Neto organizou um grupo de acionistas e, junto com seu filho Tomás, advogado societário, saiu a campo em busca de uma nova maioria acionária, que abrisse caminho para uma oferta hostil. O primeiro grupo a se interessar pelas ações dos dissidentes da Vale do Rosário foi a Polo Capital. Depois, veio a Bunge, que ofereceu quase R$ 700 milhões. Em seguida, a Cosan, de Ometto, ampliou a oferta. “O Luiz Biagi deveria ter vendido suas ações conosco”, disse Camargo Neto à DINHEIRO. “Ele poderia ter ganho algo em torno de R$ 100 milhões nessa operação.”
Para os Biagi, no entanto, a questão envolvia muito mais do que dinheiro. Tratava-se de defender a memória do grupo e a preservação de uma usina, a Vale do Rosário, que havia sido fundada pelo velho Maurílio. Em poucos dias, Luiz Biagi e dois de seus irmãos, André e Alexandre, estruturaram uma operação de R$ 800 milhões com o Bradesco Banco de Investimentos, o BBI, que era comandado pelo executivo Bernardo Parnes. Com esse dinheiro, eles exerceram o direito de preferência, compraram as posições dos minoritários, como Pedro Camargo, e evitaram a venda da Vale para a Cosan. Nessa guerra, tiveram o apoio de outros sócios da usina, como Cícero Junqueira Franco, também um pioneiro do Pró-Álcool. Em meio a tudo isso, os Biagi fundiram a Vale do Rosário com a Santelisa, que já era deles, criando a gigante Santelisa Vale. Em contrapartida, deram em garantia ao BBI boa parte do patrimônio pessoal da família, inclusive avais pessoais. Tudo para que um Ometto não invadisse o território dos Biagi.
Na montagem dessa complexa operação, o único que ficou de fora foi o primogênito, Maurílio Biagi Filho, conhecido como Maurilinho, que comandou os negócios do clã entre 1978, ano da morte do pai, até 2002, quando brigou com os irmãos. “Eu liguei para o Luiz e disse para ele não entrar nessa, pagando aquele preço absurdo que estavam pedindo”, disse Maurilinho à DINHEIRO. “A oferta da Cosan pela Vale foi emocional e a recusa dos sócios a ela foi mais emocional ainda”. Com negócios pessoais fora do bloco familiar, Maurilinho é hoje o Biagi com melhor situação financeira. Ele controla o grupo Moema, com cinco usinas de última geração no interior de São Paulo. Se a história dos Biagi tivesse inspirado a ficção, nos moldes do seriado Dallas, um grande sucesso da televisão nos anos 80 sobre uma próspera família texana do petróleo, Maurilinho seria o “J.R. Ewing”, o primogênito em permanente conflito com os irmãos mais jovens.
Para que tivesse dado certo, a operação Santelisa Vale dependia de uma premissa básica: o seu próprio lançamento de ações. Como os Biagi se endividaram para comprar as participações dos demais sócios, seria necessário vender parte do capital do novo grupo em bolsa – por um valor bem maior e em pouco tempo. Essa operação seria estruturada pelo banco ING, que foi contratado pelos Biagi com essa finalidade. E antes mesmo do IPO, grandes grupos financeiros chegaram a visitar a Santelisa, dispostos a investir no negócio. Entre eles, a Gávea, de Armínio Fraga, e o já falido Lehman Brothers. Quem acabou investindo na empresa, com um aporte de US$ 400 milhões, foi o banco de investimentos Goldman Sachs. Só que o tempo foi passando, as condições de mercado se deterioraram e o lançamento de ações não foi feito. “Eles perderam completamente o timing do IPO”, disse à DINHEIRO um banqueiro que tentou entrar na operação. “E eles sempre diziam que não tinham pressa e que poderiam vender as ações a qualquer momento.” Para agravar a situação, o setor sucroalcooleiro foi duramente atingido pela crise. Usinas do setor, que eram negociadas numa relação de US$ 200 por tonelada de cana, passaram a ser cotadas ao redor de US$ 50 a tonelada. Resultado: a Santelisa Vale tem hoje um valor de mercado inferior ao da própria dívida.
Agora, a prioridade dos Biagi é encontrar um novo sócio para o grupo. Eles estariam dispostos até a compartilhar o controle acionário, cedendo a gestão e ficando apenas no conselho de administração. O representante de um banco, ouvido pela DINHEIRO, declarou que a família deveria se dar por satisfeita se conseguir liberar as garantias e os avais pessoais. “Deram até o cachorro da família em garantia”, ironizou. As usinas, segundo esse mesmo banqueiro, seriam vendidas por um valor simbólico ao novo controlador, que assumiria a dívida. O executivo de um grupo que pretende apresentar propostas pela Santelisa Vale também afirma que a recuperação só será viável se os Biagi saírem de vez da operação. Mas não é o que pensa a família. “Só sai negócio se o novo investidor estiver disposto a dividir o controle”, afirma uma pessoa próxima ao clã. Um último recurso, que poderia ser explorado pelos Biagi, seria a própria recuperação judicial.
No cronograma montado pelo consultor Luiz Kauffmann e pelos bancos, as propostas terão de ser apresentadas até 15 de março. O BNDES, que já é sócio da Santelisa Vale, poderá colocar mais R$ 500 milhões na empresa, se houver mesmo a entrada de um novo sócio – e, de preferência, de capital nacional. Ao todo, a empresa responde por mais de 40 mil empregos diretos e indiretos no interior de São Paulo. Alguns bancos também aceitariam converter parte da dívida em ações. Consta que existem dez grupos interessados. Entre as multinacionais, as principais candidatas seriam Cargill, Dreyfus, ADM e Bunge, com destaque para a última, que tentou comprar a Vale do Rosário na época da oferta hostil. Entre os grupos nacionais, a Cosan seria uma candidata natural, mas enfrenta a resistência dos Biagi e também do BNDES, que é contra a formação de um monopólio no setor. Isso abre espaço para os novatos do etanol, como a ETH, do grupo Odebrecht, que pretende atingir uma capacidade de 30 milhões de toneladas até 2012. “Queremos a liderança, estamos investindo em projetos a partir do zero, mas estamos atentos às oportunidades de consolidação”, disse à DINHEIRO o presidente da empresa, José Carlos Grubisich. Além deles, há também espaço para os financistas. Os gestores da GP já visitam o data-room da empresa no escritório Pinheiro Neto, assim como os sócios da BTG, criada pelo banqueiro André Esteves. No caso de Esteves, haveria até uma sinergia. Recentemente, a BTG comprou 200 postos da rede Via Brasil, com a meta de integrar a distribuição com a cadeia produtiva do etanol. Além disso, tanto ele como Luiz Biagi têm escritório na Rua Amauri, em São Paulo. Ao que consta, os dois têm conversado bastante nas últimas semanas e muitos apontam André como um dos favoritos. Mas ele só será bemsucedido se estiver disposto a valorizar o papel e a própria história dos Biagi, o que vale para todos os pretendentes da noiva mais cobiçada do mundo do etanol.