08/11/2013 - 21:00
O banqueiro Roberto Setubal não se esquece dos primeiros dias de março de 1984. Sem aviso prévio, o governo do presidente José Sarney decretou o Plano Cruzado e reduziu a inflação oficial a zero com uma canetada. Setubal, ao analisar os números do Itaú, percebeu – com uma boa dose de horror – que, pela primeira vez em sua história, as operações do banco estavam dando prejuízo. “Concluímos que nossa maneira de trabalhar era ineficiente após anos de inflação elevada, e precisaríamos fazer mudanças”, disse ele, anos após o fato. Ao longo de um doloroso processo de ajuste, o banco demitiu um terço de seus funcionários, terceirizou outro tanto, investiu pesado em tecnologia e cortou fundo os custos.
Unibanco assume o Nacional: operação foi uma das principais realizadas do saneamento
do sistema bancário brasileiro
Poucos meses após a decretação do Cruzado, o Itaú voltou ao azul. “Se não tivéssemos feito isso, haveria problemas no Plano Real”, disse Setubal. Dez anos depois, houve. Em julho de 1994, o Plano Real acabou de vez com a hiperinflação e tornou explícitas as ineficiências de um sistema viciado em captar dinheiro de pessoas e empresas para emprestá-lo ao governo. Como resultado, duas dezenas de bancos grandes e meia centena de menor porte fecharam as portas, foram vendidos, privatizados ou tiveram de se fundir. A crise foi tão pesada que obrigou o então presidente Fernando Henrique Cardoso a estabelecer, no dia 5 de novembro de 1995, o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional.
O nome quilométrico foi logo abreviado para Proer, e se tornaria uma das siglas mais incandescentes do debate político e das demandas jurídicas até 2010. “O programa impediu um possível colapso do sistema bancário, e recebeu, posteriormente, elogios do ex-presidente Lula”, disse Fernando Henrique na terça-feira 5. A estridência do debate foi provocada pelo fato de o Proer ter usado recursos públicos para socorrer os bancos. Funcionava assim: um banco iria quebrar, deixando alguns milhões de correntistas e empresas sem dinheiro. Para evitar isso, o Banco Central intervinha, injetava recursos suficientes para fazer as contas fecharem e promovia o casamento com alguma instituição financeira saudável.
O caso mais rumoroso foi o do Banco Nacional. Tradicional casa bancária de origem mineira, o banco da família Magalhães Pinto perdeu muito dinheiro com o Plano Cruzado. Os prejuízos geraram um rombo nas contas que foi escondido durante dez anos. Quando a inflação acabou, não deu mais para manter o problema debaixo do tapete. O banco tinha mais de R$ 6 bilhões a descoberto – cerca de R$ 22 bilhões a dinheiro de hoje – e iria quebrar. Como era o sexto maior banco do País, os riscos eram os de uma crise que vergasse todas as outras instituições.
“O sistema financeiro poderia ter quebrado se não houvesse um programa para impedir a falência do Nacional”, diz o advogado Isaac Sidney Ferreira, procurador-geral do BC. “E, sim, esse programa custou dinheiro.” Para impedir a tragédia, o programa foi estruturado rapidamente pelo BC, e o casamento do Nacional com o Unibanco, que já vinha sendo tratado muito discretamente fazia algumas semanas, foi fechado às pressas. “Muitos bancos casaram na polícia”, diria, posteriormente, Gustavo Franco, ex-presidente do BC. Na época, o Proer obrigou o BC a injetar R$ 15 bilhões nos bancos em dificuldades, ou R$ 45 bilhões, em dinheiro de hoje.
“Mas cabe lembrar que o Banco Central está sendo pago e vai receber cada real de volta”, diz Ferreira. A execução do Proer seguia um ritual. Decretada a intervenção, os ativos de boa qualidade e, principalmente, os depósitos da clientela, simplesmente passavam para outro banco – e a vida seguia seu rumo. Os donos perdiam o controle de seus bancos e tinham de arcar com seu patrimônio pessoal para cobrir os rombos gerados por anos de má gestão, decisões erradas ou, simplesmente, incapacidade de operar em um mercado mais moderno e competitivo. No entanto, o departamento jurídico do BC logo perceberia que resignação e desprendimento não eram características dessa turma.
O resultado do programa mudou o perfil do sistema
bancário: 20 bancos grandes mudaram de dono
“O Proer emprestou dinheiro público, que precisava ser cobrado”, diz Ferreira. O problema bancário, porém, não se limitava à iniciativa privada. Os bancos públicos controlados pelos governos estaduais foram outra fonte de dores de cabeça para o sistema. Seus controladores – os Estados – usavam-nos como um caixa informal. O caso mais emblemático foi o do paulista Banespa, que sofreu uma intervenção em 1994 e ficou sob administração do BC até sua venda para o espanhol Santander, seis anos depois. “Quebrei o Banespa, mas elegi meu sucessor”, disse, em 1990, o falecido Orestes Quércia, ex-governador de São Paulo. Banespa e Banerj – este, vendido ao Itaú em 1995 – custariam R$ 40 bilhões para sanear em recursos corrigidos para 2013.
Os demais bancos levaram outros R$ 30 bilhões, em um programa conhecido como Proes. Na sua grande maioria, as instituições financeiras estaduais foram privatizadas, e Bradesco e Itaú dividiram esse espólio. Os bancos controlados pelo governo federal não ficaram de fora. Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e, em menor escala, BNDES, Banco da Amazônia e Banco Meridional tinham vultosos empréstimos de má qualidade, também mascarados pela inflação elevada. Esses bancos receberiam R$ 29 bilhões em um programa conhecido como Proef, estabelecido em 2001. O resultado do programa mudou a configuração do sistema bancário. O Econômico, do baiano Ângelo Calmon de Sá, passaria quase um ano de portas fechadas e por dois controladores antes de ser absorvido pelo Bradesco.
O Nacional foi incorporado pelo Unibanco, que praticamente dobrou de tamanho e passou a disputar a liderança do mercado com Itaú e Bradesco. Já o Bamerindus, do ex-senador paranaense José Eduardo Andrade Vieira, foi a porta de entrada do britânico HSBC para o mercado brasileiro. Mais do que socorrer bancos, o saldo do Proer foi um sistema financeiro sólido e mais fiscalizado do que há 18 anos. “Atualmente, os bancos brasileiros são mais capazes de resistir às crises”, diz Ferreira. “Nos últimos anos, os problemas que ocorreram em bancos de pequeno porte foram provocados por fraudes e atos ilícitos, e não por problemas de solvência no sistema.”