28/03/2024 - 9:28
Kit gay, banheiros unissex, mutilação de crianças: histórias inventadas pela extrema direita para mobilizar massas e chegar ao poder. Quem perde são os professores, no alvo de uma caçada, e a qualidade do ensino.”Há um projeto secreto de kit gay nas escolas. Precisamos proteger nossos filhos”. Essa fake news circulou amplamente há alguns anos e vira e mexe reaparece. Além dela, também tivemos a fake news que dizia que os professores estavam doutrinando os alunos e os incentivando a se tornarem gays ou trans, a que dizia haver uma doutrinação comunista nas escolas, a que dizia que o PT enviaria mamadeiras de “piroca” para as creches. Ah, e quem pode se esquecer da boa e velha fake news que alertava a boa população de que seriam criados banheiros unissex nas escolas de todo o país?
Acompanhei todas elas pelas redes sociais. A do banheiro unissex teve bastante força e era ilustrada com a imagem de um homem urinando e uma menina sentada na privada ao lado, vendo as partes íntimas do homem.
Achava um absurdo tão grande que simplesmente não conseguia crer que alguém acreditava naquilo. Mas, ao abrir os comentários, a surpresa vinha: milhares de pessoas, e talvez não seja exagero falar em milhões, acreditavam.
Na época, eu tinha uma visão ingênua da situação. As postagens eram simplórias e os conteúdos eram tão absurdos que eu pensava que essas fake news eram criadas, propagadas e impulsionadas por pessoas apenas desinformadas e sem qualquer resquício de senso crítico.
Hoje, entendo claro como a água: o processo todo é muito mais complexo e articulado do que parece. Para expor o cenário, precisarei trazer termos dos quais não gosto muito: direita e esquerda. A razão de eu não gostar é por acreditar que são utilizados muitas vezes de forma equivocada e não para ilustrar os reais grupos, mas sim os extremos de cada um.
Estratégia para mobilizar massas
A extrema direita, grupo com perigosos tons fascistas, é comprovadamente a grande criadora das fakes news citadas no início deste texto. Tudo foi feito de forma incrivelmente estratégica, articulada e bem planejada, utilizando narrativa e linguagem com palavras-chave que permitem a mobilização e a sensibilização da grande massa – composta majoritariamente por pessoas de senso comum, sem educação política e muitas vezes desinformadas.
Na época, foi uma grande estratégia para colocar Jair Bolsonaro no poder em 2018.
Não sei se você, leitor, já assistiu à série The Walking Dead, mas não posso deixar de fazer uma analogia. Nela, há milhões de zumbis, seres que andam sem qualquer tipo de pensamento crítico, mas que formam um grupo gigante. Em alguns momentos, os humanos restantes estrategicamente coordenam o grupo de zumbis para atender seus próprios interesses, agendas e proteção.
No Brasil, o grupo pensante da série é a extrema direita, que utiliza estrategicamente a grande massa, por meio de fake news, para sua própria agenda. O objetivo é estar no poder e ter influência política. Não agem como verdadeiros partidos políticos, mas como gangues e com muitos interesses, dos quais passa longe o bem-estar real da população e o desenvolvimento da nação.
Professores, já sobrecarregados, viram alvo
Você, leitor, pode estar pensando: “Mas que conversa antiga. Ele está desatualizado.” Bom, acredito que a discussão segue sendo atual. Há algumas semanas, escrevi uma coluna expondo minha indignação com o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) tomando posse para presidir a Comissão de Educação da Câmara.
Fiquei chocado com os comentários. Um dizia: “Só ele para proteger nossas crianças da doutrinação”. Outro: “Eles querem mutilar nossas crianças”. Por fim, fiquei abismado com o de uma senhora: “É um absurdo o que estão querendo impor aos nossos filhos. NOSSOS FILHOS, NOSSOS FILHOS!”
É assustador. Fico muito bravo e desapontado com as cabeças pensantes por trás desse show de horrores. É pura maldade. É incitado um ódio aos professores, aos agentes das escolas e aos próprios colégios, e tudo isso pautado em mentiras.
Os professores já são agentes desvalorizados. Tudo o que não precisam é serem alvos de uma caçada. Vivenciei em dois estados o caso de alunos e seus pais perseguindo professores, sobretudo os de história. Em um deles, prefiro não citar o estado, o pai chegou a ir com uma arma na escola e almejava matar a professora.
Escola deve ser espaço de formação cidadã
Percebem o perigo do Nikolas presidindo a comissão? É necessário sim haver educação sexual nas escolas e que elas sejam um espaço para a formação do senso crítico de nossos jovens. Educação sexual não é ensinar as melhores posições ou incentivar o sexo, mas munir nossos jovens de informações que têm como único objetivo sua proteção.
Escola é um espaço de formação e aprendizagem. Não apenas em matemática ou biologia, mas também de formação cidadã. Lá é sim espaço para discussões importantes, sobretudo para aquelas que visam a proteção do público discente. Não há uma doutrinação como a que dizem e, não, nossas crianças não estão em risco.
Para corroborar meu ponto, utilizarei uma explicação mais simplista: nem se os professores quisessem eles teriam tempo de doutrinar seus alunos. Quem diz isso claramente não conhece a realidade de uma escola pública.
Salvo exceções, o cenário padrão de uma sala de aula é o seguinte: 50 minutos de aula. Desses 50, precisamos descontar o tempo de todos os alunos irem e voltarem do banheiro, entrarem na sala, todos chegarem, todos se sentarem e o professor conseguir a atenção da classe. De forma geral, sobram menos de 30 minutos de aula.
Dado esse cenário, o professor muitas vezes está atrasado com a disciplina, desmotivado e muitas vezes sem energia. Mesmo nos casos excepcionais, quando as aulas fluem com mais calmaria, há uma série de obrigações formais e burocráticas para os professores.
Portanto, não se preocupem, pois não há crianças sendo mutiladas. Não há um incentivo ao homossexualismo ou à transexualidade – até porque não há como incentivar alguém a ser o que simplesmente não é. Nunca houve um projeto de kit gay, e muito menos o incentivo ao sexo.
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Vozes da Educação é uma coluna semanal escrita por jovens do Salvaguarda, programa social de voluntários que auxiliam alunos da rede pública do Brasil a entrar na universidade. Revezam-se na autoria dos textos o fundador do programa, Vinícius De Andrade, e alunos auxiliados pelo Salvaguarda em todos os estados da federação. Siga o perfil do Salvaguarda no Instagram em @salvaguarda1
Este texto foi escrito por Vinícius De Andrade e reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.