Às 2h32 de terça-feira, 28 de janeiro, o sinal da radiopatrulha interrompeu o plantão até então sossegado do 6.º Batalhão da Polícia Militar. Um incêndio aparentemente em um carro de luxo acabara de ser controlado pelo Corpo de Bombeiros em um recôndito da Estrada do Montanhão, periferia de São Bernardo do Campo, no ABC paulista. O chamado para viaturas era urgente. Pelo que diziam, havia cadáveres escondidos no porta-malas.

A ocorrência deixou os policiais em ronda intrigados. A delegacia daquela região registrou menos de um homicídio por mês no ano passado: não deveria ser um caso comum. Pelas coordenadas do local, viram que correspondia à uma área de terra batida e cascalho, quase sem luminosidade, e toda ladeada por matagais.

Quando a viatura chegou, os agentes se depararam com a imagem: os corpos, carbonizados, estavam colados uns aos outros. Foi preciso analisar com cautela para confirmar que eram três mortos. “Dois aparentavam ser do sexo masculino, não sendo possível precisar”, registrou-se no boletim de ocorrência. Do outro cadáver nem sequer dava para arriscar.

Por causa do estrago provocado pelas chamas, a perícia não conseguiu coletar impressões digitais na lataria destruída. Só um pedacinho escapou do fogo, justamente onde fica a placa traseira. A sequência DWQ-7944 era a única pista em mãos.

Após consultas no sistema, descobriram se tratar de um Jeep Compass, ano 2019, de cor azul. O proprietário era o empresário Romuyuki Veras Gonçalves, de 43 anos, morador do condomínio Morada Verde, em Santo André, a 6,5 quilômetros dali. Como de praxe, policiais se deslocaram até a casa e logo perceberam que não havia mais ninguém para responder a campainha – a não ser as cadelinhas July e Belinha.

Levou menos de 24 horas para a polícia confirmar Romuyuki entre os corpos no porta-malas. Também identificaram a mulher dele, Flaviana Gonçalves, de 40 anos, e o filho caçula Juan Victor, de 15. A polícia encontrou a casa revirada, sem uma TV, videogame, joias e R$ 8 mil. Há, ainda, suspeita de que as vítimas tenham sido torturadas.

A tragédia da família causou ainda mais comoção quando, no dia seguinte, os investigadores prenderam os primeiros envolvidos no crime: a filha mais velha do casal, Anaflávia Gonçalves, de 24 anos, e a mulher dela, Carina Ramos, de 26. Em depoimentos logo após o caso, elas alegaram inocência.

Duas semanas depois, Anaflávia e Carina mudaram a versão e confessaram ter tramado roubar R$ 85 mil para depois repartir o valor com comparsas – mas sob condição de não haver violência física ou xingamentos. “A coisa saiu do controle”, diz a advogada de defesa Isabel Cristina Rotta. Até agora, elas negam participação nos assassinatos.

Caso de família

Em dezembro, a avó Vera Lúcia Conceição, de 57 anos, estava feliz. Os exames mais recentes não indicavam nenhum avanço do câncer de mama, contra o qual faz tratamento há dez anos. Às vésperas da festa de Natal, aguardava ansiosa para receber a filha Flaviana e a família na sua casa em Extrema, região sul de Minas.

Tomou um susto quando viu o carrão que parou na frente do portão. “Cadê o pretinho?”, Vera perguntou, se referindo ao veículo antigo da família. Descrita como extrovertida, Flaviana apontou o Jeep Compass, modelo que não sai a menos de R$ 99 mil da concessionária, e respondeu: “Mãe, a gente queria fazer uma surpresa!”. No momento, a avó também não deixaria de notar que a neta Anaflávia não participava da viagem de fim de ano.

O carro zero quilômetro era um sinal da prosperidade da família de raízes humildes. O casal se conheceu ainda na infância, quando os dois eram vizinhos em Cidades Tiradentes, bairro pobre da zona leste da capital. Com cerca de 10 anos, Romuyuki já ajudava o pai a bater de porta em porta, tentando vender produtos de limpeza que eles mesmos fabricavam. “Foi o primeiro namorado da minha filha”, conta Vera.

O primeiro emprego formal de Romuyuki foi como office-boy. Depois, formou-se em Administração e trabalhou por 23 anos em uma multinacional. Entrou auxiliar administrativo e saiu representante internacional. Em 2016, lançou o livro de autoajuda Adaptações às Mudanças em Tempos Acelerados. Flaviana era formada em Enfermagem.

Há menos de dois anos, o casal resolveu investir em um negócio próprio e abriu, em um shopping de São Bernardo, a primeira loja de perfumes. Em questão de meses, inauguraram uma filial em Mauá e preparavam a terceira em Extrema. Sem ter concluído o curso de Engenharia, a filha mais velha passou a trabalhar nas lojas dos pais. Ao fim do dia, via a mãe contabilizar as vendas, que estavam indo bem.

Já Juan Victor era estudante e tinha o sonho de ser astronauta – a diferença para a irmã mais velha é de uma década. Curiosamente, quando Flaviana estava na gestação do caçula, Vera também esperava uma menina temporã. “Fiquei grávida junto com a minha filha”, comenta a avó.

Juntos

Parentes dizem que os quatro eram muito unidos e costumavam compartilhar das mesmas programações. A família gostava de ir à praia, mesmo se fosse para acampar. “Tudo que eles conseguiram foi com muito trabalho”, diz o primo Diogo Reis. “Era uma família bem tradicional: o pai sério e a mãe brincalhona.”

A relação com Anaflávia teria mudado após ela conhecer Carina, por meio de uma rede social, em meados de 2018, segundo relatam. Na época, a filha mais velha era casada com outra mulher. Romuyuki e Flaviana foram padrinhos na cerimônia e a família sempre cita o episódio como evidência de que o casal lidava bem com o fato de ela ser homossexual.

Descrita como ciumenta e possessiva, Carina havia terminado outros dois casamentos. No primeiro, com um homem, teve duas filhas biológicas. No outro, com uma mulher, adotou outra menina. Ela e Anaflávia passaram a morar juntas no Jardim Santo André e se casaram em 9 de janeiro, pouco antes do crime. Parentes alegam que não foram chamados e só ficaram sabendo da união depois.

“Anaflávia passou a se distanciar cada vez mais da família”, diz Reis. Segundo relatam parentes, Carina exerceria uma espécie de “domínio” sobre a mulher e também foi proibida de frequentar a casa após conflitos com Romuyuki. O episódio central aconteceu após o pai presentear Anaflávia com um Fiat Palio. Em seguida, a filha teria sido obrigada por Carina a passar o carro para o nome dela.

A advogada Isabel Cristina Rotta diz que as duas protagonizavam “brigas normais de casal” e nega atritos entre Carina e a família de Anaflávia. “Ela saía normalmente com todos”, diz. Ainda segundo Isabel, a ideia do suposto assalto teria surgido por “questões financeiras”. Durante a ação, no entanto, os comparsas – dois deles, primos de Carina – teriam perdido a cabeça após descobrir que não havia a quantia de R$ 85 mil na casa, ameaçado as duas e decidido executar a família. A versão de um dos primos é diferente: ele diz que elas participaram ativamente da ação e deram aval para as mortes.

Até o momento, além do casal, a Polícia Civil conseguiu prender Juliano de Oliveira Ramos Júnior (um dos primos) e Guilherme Ramos da Silva. O outro primo, Jonathan Fagundes Ramos, está foragido. Agora, os investigadores trabalham para confirmar a real motivação e o papel específico de cada um. Com o processo sob segredo de Justiça, um investigador comentou em anonimato: “Muitos ficam dizendo que Carina que é a cabeça. Pode até ser. Mas, honestamente, eu não sei ainda. O que é certo é que eu não chamaria nenhum dos cinco para tomar um cafezinho na minha casa”. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.