04/12/2002 - 8:00
Reparem nos rostos dos três jovens negros, estampados na fotografia ao lado, pois eles poderão em breve estar negociando a abertura de mercados internacionais para o Brasil, ou ocupando postos da burocracia econômica em Brasília. Agenor da Silva Filho, Viviane Coelho de Jesus e Jamile Cerqueira são três dos aríetes encarregados de derrubar o último muro que atrapalha o acesso de negros e pobres à carreira diplomática, um reduto dominado há 150 anos por uma elite branca e bem-nascida. Dos 1.057 diplomatas em atividade, somente oito são negros ou pardos, 0,7% do total. Mas agora o Itamaraty está ajudando 20 afro-descendentes a entrar para a diplomacia. Há entre eles bacharéis, mestres e doutores, selecionados dentre 400 candidatos de todo o País. Ganharam bolsa de estudos do governo, R$ 1 mil por dez meses, para que possam se dedicar em tempo integral ao vestibular 2003 do Instituto Rio Branco, órgão do Itamaraty responsável pela formação da carreira. Trata-se de um dos concursos mais difíceis do País, com 3.200 candidatos para 30 vagas no último deles. Um bom programa de estudos ultrapassa R$ 2 mil de custo mensal. A 20 de novembro último, esses jovens negros foram reunidos em Brasília e apresentados pelo chanceler Celso Lafer ao presidente Fernando Henrique Cardoso. ?Estamos democratizando o acesso?, festeja o embaixador Osmar Chohfi, secretário-geral do Itamaraty e um dos idealizadores do programa. ?Mas eles terão que conquistar a vaga por méritos, sem cotas?, diz o ministro João Almino, diretor do Rio Branco e tutor dos candidatos.
Quinze dos bolsistas são egressos da classe média, filhos de advogados, médicos, analistas de sistemas ? mas todos com os rendimentos achatados. Chamou a atenção do tutor João Almino
o preparo cultural e os ideais políticos demonstrados pelo grupo. Agenor da Silva Filho, por exemplo, estudou dos cinco aos 18
anos na Escola Americana de Salvador. Foi convidado a cursar Medicina em Harvard, mas optou por Antropologia Médica e quer
ser presidente da República. ?Somos propulsores da auto-estima
de milhares de jovens que sequer tentam certas carreiras porque imaginam que não terão acesso?, diz a baiana Viviane Coelho de Jesus, formada em Turismo. Jamile Cerqueira acabou de se formar
em Publicidade. ?A sociedade admite nossa ascensão pelo esporte
ou pela música, mas estranha o sucesso intelectual do negro?, reclama. O carioca Wagner Araújo tem uma história curiosa. Seu bisavô era serviçal particular do Barão do Rio Branco; o avô
idem; ele agora quer ser diplomata. ?Tenho um resgate
histórico a conquistar.?
A rigor, desde que os concursos para o Itamaraty foram criados, em 1852, jamais houve uma regra escrita sobre seleção étnica. Mas o velho Barão, a partir de 1902, começou a criar uma casta formada por sobrenomes tradicionais. A prova mais importante do concurso era a oral, presidida pelo Barão em pessoa. O escritor mulato Lima Barreto foi recusado porque seria ?muito feio?. Vingou-se da carrière no livro satírico Os Bruzungangas. Hoje, o Itamaraty só recebe um negro a cada três ou quatro anos. O negro mais antigo na carreira é Júlio Boaventura Matos, de 52 anos, da turma de 1982. Serviu em La Paz, Gana (África) e Viena. De seus 36 colegas de turma, o de carreira mais cintilante é João Luiz de Barros Pereira Pinto. Nascido em Londres, é filho de diplomata. Serviu em Washington, Quito e no Palácio do Planalto. Foi promovido a conselheiro há três anos. Está hoje em Nova York. Discriminação? ?É difícil identificar, pois são todos muito habilidosos no Itamaraty?, desconversa Júlio Boaventura. O secretário-geral Osmar Chohfi, neto de um mascate sírio e filho de um rico comerciante da Rua 25 de Março, São Paulo, jura que há meio século não há qualquer tipo de discriminação racial ou étnica no Itamaraty. Difícil mesmo, admite, é pagar os melhores cursinhos e ultrapassar o muro de um concurso que exige que se conheça da geografia da Abissínia à vida do impressionista Monet.