Quando as tropas do general Olympio Mourão saíram de Minas Gerais em direção ao Rio de Janeiro, na madrugada de 31 de março de 1964, deram início, de forma quase acidental, a um dos movimentos de transformação mais profunda da vida empresarial brasileira. À partir daquele dia, e por longos 21 anos, os militares e um grupo de técnicos escolhidos por eles ? os famosos tecnocratas ? passaram a dar as cartas. Os cinco presidentes militares criaram, ao sabor das suas inclinações ideológicas, talentos e preconceitos pessoais, um modelo econômico que mudou a face e as entranhas do País. Autoritário e pragmático, esse modelo tinha o Estado como centro dinâmico e Brasília como Meca. As empresas nacionais e estrangeiras tinham que se curvar diariamente em direção à capital, em busca de licenças, créditos e oportunidades. Ancorados no poder do AI-5 e na mobilização de recursos do Estado, Arthur da Costa e Silva, Emílio Médici e Ernesto Geisel criaram setores industrias a partir do nada ? como a petroquímica, as telecomunicações e a informática ? enquanto outros, incipientes nos anos 60, cresceram para além do que seus fundadores poderiam sonhar. Esse foi tipicamente o caso das empreiteiras e de outras empresas ligadas ao setor de infra-estrutura, que se beneficiaram diretamente do investimento estatal do período. O fato é que em março de 1985, quando o general João Batista Figueiredo saiu pelos fundos do Palácio do Planalto, recusando-se a entregar a faixa presidencial a José Sarney, o cenário empresarial do País era irreconhecível. O Brasil continuava pobre e injusto, tinha um estado semi-falido e convivia com taxas grotescas de inflação, mas havia se transformado, aos trancos e barrancos, na oitava economia industrial do planeta. Algumas de suas empresas já se contavam entre as maiores do mundo.

 

Mario Garnero é um empresário que surgiu nesse período. Em 64, recém-saído da faculdade, dirigia em São Paulo a campanha de Juscelino Kubtichek para presidente. A eleição estava marcada para 1965. O golpe abortou a eleição, Juscelino foi cassado (embora tivesse 65% das intenções de voto) e o então jovem advogado, depois de ter sua casa revistada, trocou a política pela vida empresarial. Em 1970, quando Delfim Netto comandava a economia, ele tornou-se diretor de relações industriais da Volkswagem. A partir de 1974, como presidente da Anfavea, passou a conviver de perto com o poder militar. Em 1976, valendo-se dos seus contatos internacionais e do aval do governo, organizou em Salzburgo, na Alemanha, um suntuoso encontro empresarial com milhares de participantes. Nessa época do governo Geisel o Brasil era a vitrine do capitalismo emergente e Garnero consegui reunir 80 sócios para montar o banco de negócios Brasilinvest. ?Cada um entrou com US$ 250 mil e juntamos um capital de US$ 20 milhões?, conta ele. Seus problemas começaram mais tarde, quando o governo do general Figueiredo, de quem Garnero era amigo, induziu o Brasilinvest a associar-se à NEC japonesa numa joint-venture para a produção de centrais telefônicas digitais no Brasil. ?A proposta da Philips era melhor, mas a tecnologia da NEC interessava ao governo?, lembra. As coisas na época funcionavam assim. Era pegar ou largar. Garnero pegou e tocou o negócio com sucesso até março de 1985, quando Figueiredo deixou a presidência. No primeiro dia do governo Sarney a Nova República ordenou a intervenção no Brasilinvest. Garnero viveu seu inferno astral. Foi coagido a se desfazer da NEC, que perdeu as encomendas do governo, e a empresa foi parar nas mãos da Globo. Levou 10 anos para Garnero mudar a situação do Brasilinvest na Justiça.

 

Decisões de governo, durante o período militar, eram tão importantes quanto informações de governo. A Zona Franca foi criada nesse período e serviu de plataforma para muitas empresas que perceberam a oportunidade. Os projetos da indústria de base irrigaram setores inteiros com crédito subsidiado. Mudanças institucionais eram constantes e traziam embutidas grandes oportunidades. Veja-se o caso Ronald Levinhson, dono da famosa e extinta caderneta de poupança Delfim. Ele começou seu negócio com uma informação privilegiada que antecipava uma mudança. Em 1964 era consultor e encontrou na rua, no Rio de Janeiro, o economista Mário Henrique Simonsen, que trabalhava próximo ao governo Castelo Branco. ?O Simonsem me disse que eles iriam mudar a lei que dava estabilidade aos empregos do setor privado?, contou Levinhson ao editor Leonardo Attuch. Em vez de empregos estáveis, os trabalhadores teriam o FGTS. Pela lei, seriam alocados no FGTS 8% dos recursos das folhas de pagamento do Brasil, que seriam usados para financiar habitações de classe média. Era uma montanha de dinheiro e o consultor vislumbrou um grande negócio. ?Comprei cinco sociedades de crédito imobiliário?, lembra. Nos anos 70, quando surgiram as cadernetas de poupança, também com a finalidade de atrair recursos para a habitação, ele comprou a Delfim. Com métodos agressivos de publicidade, a empresa chegou a 1982 com depósitos de US$ 230 milhões. E então o vento de Brasília mudou. O governo decidiu que era melhor ter os recursos da poupança nos bancos comerciais e uma série de instruções do Banco Central liquidou o negócio de Levinhson. ?Fui perseguido pelos militares porque, mesmo sendo um homem de direita, sempre protegi meus amigos comunistas?, diz o empresário, que hoje é dono da UniverCidade, uma instituição de ensino carioca.

Esse tipo de ambiente econômico hoje tem nome científico: crony capitalism, ou capitalismo de compadres, cunhado pelos economistas anglo-saxões para definir modelos asiáticos baseados no poder de Estado e no favorecimento dos apaniguados. Isso não explica o que aconteceu no Brasil durante a ditadura, mas é parte da explicação. Havia muito poder e muito dinheiro concentrados em Brasília, a imprensa estava sob censura, e isso criou distorções. Os amigos se deram bem e os inimigos ficaram de fora. É claro que, mesmo nesse ambiente, a maioria dos negócios floresceram sem que seus comandantes tivessem laços com a ditadura, mas esses empresários também dependiam dos ventos de Brasília. Pegue-se o caso da construtora Método, de São Paulo. Ela foi criada em 73 e decolou no foguete do milagre econômico. ?Crescemos construindo hospitais, escolas, creches, prédios públicos e fóruns?, conta Hugo Marques da Rosa, fundador da companhia. ?O governo representava 80% de todos os investimentos.? Assim a Método chegou ao início dos anos 80 com 4 000 funcionários ? e logo em seguida começaram os problemas. Primeiro veio a ressaca da segunda crise do petróleo de 79, depois a elevação dos juros internacionais e, finalmente, a inadimplência do Estado brasileiro. Em dezembro de 82 a empresa já empregava apenas 700 pessoas. ?A partir daí tivemos que nos reestruturar a tocar a empresa de um outro jeito?, diz Rosa. Hoje a economia quase não cresce e o ambiente escasseia em oportunidades de negócios. Mas há estabilidade e são os empresários, e não o governo, quem decide os rumos dos negócios. Com a ditadura acabou um período selvagem e obscuro da vida econômica brasileira. Agora o país vive sob a luz. Só falta que ela conduza ao crescimento.

OCASO NA DITADURA

HANGAR DA PANAIR
OCUPADO: em 65 governo
cassou os vôos da empresa
e decretou sua falência sumária
À 3 da tarde do dia 10 de fevereiro de 1965, uma quarta-feira calorenta no Rio de Janeiro, um telegrama do Ministério da Aeronáutica chegou aos escritórios da Panair do Brasil. A mensagem curta e grossa, um simples despacho, informava a decisão do governo militar, representado pelo ministro Eduardo Gomes, de cassar o certificado de operação da Panair, com base em uma suposta posição financeira ?insustentável?. Este comunicado seco e implacável, típico do estilo castrense do período, abateu em pleno vôo a mais conhecida e glamurosa empresa brasileira de aviação, detentora de pelo menos 10% do mercado aeroviário. Na mesma noite, com os hangares da empresa já ocupados pela tropa, a Varig assumiu todas as rotas internacionais da rival — e decolou imediatamente, sem qualquer atraso, numa demonstração de eficiência sem precedentes na história da aviação mundial. ?Embora a Varig seja uma grande empresa, assumir vôos de outras companhias com horas de antecedência só poderia ser feito se houvesse informação prévia?, afirma o especialista R. Davies, autor do clássico americano Airlines of Latin America. No dia seguinte à intervenção, uma quinta-feira, a Panair entrou com pedido de concordata preventiva. Na segunda, por iniciativa própria, o juiz transformou o pedido de concordata em falência ? alegando que a empresa, que não tinha um único título protestado e gozava de outras fontes de receita, não teria como saldar suas dívidas por estar proibida de voar. Terminava ali, de maneira kafkiana, uma trajetória de 35 anos de charme e eficiência.

?Fomos vítimas de perseguição política?, resume Rodolfo Rocha Miranda, filho do falecido dono da empresa e atual diretor-presidente da Panair do Brasil, uma holding sem atividade empresarial mantida com o intuito de lutar por ressarcimento na Justiça. A origem da perseguição é dupla. De um lado, Celso da Rocha Miranda, o pai de Rodolfo morto em 81, era um empresário muito próximo à Juscelino Kubitschek. Depois do golpe as outras empresas da família, que atuava no ramo de seguros, perderam todos os contratos com o governo e sofreram seguidas investigações da receita. Mas o problema principal da Panair talvez tenha sido acarretado pelo sócio de Rocha Miranda na Panair, Mario Wallace Simonsen. Milionário e influente dono da TV Excelsior de São Paulo e de 40 outras empresas, este paulistano era considerado pelos golpistas como homem do ?esquema Jango? de comunicação. Também ele foi perseguido pelo regime e sua empresas sistematicamente prejudicas. Morreu em Paris em 24 de março de 1965, em depressão, dias depois de ter seus bens seqüestrados pelo governo. Entrará para a história, com a Panair, na relação das primeira vítimas fatais da ditadura.
 

APOGEU NA DITADURA

MACHILINE GESTICULA: contatos militares fizeram grupo Sharp crescer na ditadura, mas não garantiram sobrevivência
Poucos empresários se movimentaram com tanta desenvoltura no regime militar como o gaúcho Matias Machline. Sua ascensão teve início em 1965, um ano após os generais se instalarem no Palácio do Planalto, quando obteve dos japoneses a autorização do uso da marca Sharp no Brasil. Seu declínio começou em 1990, ano em que o primeiro governo eleito democraticamente desde 1964 assumiu o comando do País e promoveu a abertura de mercado. A partir dali, a Sharp mergulhou em uma longa agonia, agravada em 1994, com a morte do próprio Machline, em um acidente de helicóptero nos Estados Unidos. Sete anos depois, com a operação paralisada e vergada por dívidas de US$ 350 milhões, o grupo teve sua falência decretada.

Era o fim de um império que, no auge, abrigou cerca de 30 empresas e registrou receitas à beira do US$ 1 bilhão. O motor desse crescimento reunia, além do faro comercial de Machline, uma excelente rede de amizades com os ocupantes do poder e a capacidade de aproveitar o ambiente econômico daquele momento, formado por abundantes recursos financeiros oficiais e um mercado fechado à competição internacional. Até 1965, Machline era um importador de máquinas à frente da desconhecida Cimpro. Naquele ano, com o domínio da marca Sharp ele iniciou a trajetória de industrial que o levaria à liderança nas vendas de calculadoras, televisores, vídeo-cassetes e até microcomputadores. O grande salto aconteceu em 1972, quando se tornou um dos pioneiros na fabricação de eletroeletrônicos na Zona Franca de Manaus. Para
a empreitada, ele contou com o apoio (e dinheiro) do então Mi-
nistro da Comunicações Higino Corsetti. As portas do governo
federal foram abertas graças à amizade com o general João Baptista Figueiredo, um dos mais próximos colaboradores do presidente
Emílio Garrastazu Médici. O próprio Médici ficou encantado com a conversa daquele jovem empresário e suas promessas de desenvolver uma indústria eletroeletrônica nacional e assistir
a Copa do Mundo de Futebol a cores.

O relacionamento entre Figueiredo e Machline também ajudou a colocar de pé a Lei de Informática, em 1982, quando o general já ocupava a Presidência da República. Com a reserva do setor para as empresas nacionais, a Sid Informática, de Machline, se transformou em uma das líderes na fabricação de microcomputadores ? e num dos primeiros empregos de Jonnhy, um dos filhos de Figueiredo.

No governo seguinte, Machline continuou circulando à vontade pelos corredores do Brasília. Um de seus principais amigos, José Sarney, ocupava a Presidência e o grupo Sharp arriscou-se por outros caminhos, como a TV por assinatura, em associação com o Grupo Abril. O negócio não prosperou e ajudou ao Grupo Machiline entrar na trajetória de problemas que o levou á bancarrota dez anos depois.
 

SOBREVIVENTE DA DITADURA

USINA NUCLEAR ANGRA I: construtura Odebrecht
ergueu as obras mais
emblemáticas do Brasil Grande
O setor da construção civil foi o mais impulsionado pelos ventos do regime militar. Nesta raia, nenhuma outra empresa manobrou melhor do que a Construtora Norberto Odebrecht. Antes da ditadura, a Odebrecht jamais atingiu dimensão nacional. Fundada em 1944, na véspera da derrocada do Estado Novo, nos 20 anos seguintes de democracia a empresa teve sua vida restrita a obras regionais. Em nada aproveitou a grande onda de desenvolvimento representada pela construção de Brasília, no governo de Juscelino Kubistchek. O que parecia um erro, no entanto, se revelou um atestado de salvo-conduto a partir de 1964, quando a ditadura militar chegou para ficar por 21 anos. Os militares odiavam Juscelino e seus amigos.

?No Brasil dos generais, quem quisesse crescer tinha de ter uma relação de dependência absoluta com o setor público?, lembra um alto executivo do grupo. ?Norberto entendeu essa lei?, completa sobre a estratégia do fundador. Durante o governo de Castelo Branco, ele teceu a partir da Bahia uma ampla rede de ?acessos e simpatias? entre os militares da linha dura. Acertou na mosca. Esta corrente chega ao poder com a unção de Costa e Silva à Presidência, no final de 1967, e a companhia zarpa para o sucesso. Logo em 1969, afinado com o czar da economia Delfim Netto, Norberto arrebata a construção da sede da Petrobras, no Rio. Em 1972, com Emílio Médici no Planalto, vence a concorrência para erguer a primeira usina nuclear brasileira, em Angra dos Reis. No ano seguinte, passa a fazer o Aeroporto Internacional do Galeão. Pouco depois, sob a gestão de Ernesto Geisel, levanta o monumental edifício-sede do BNDES, de onde obtinha empréstimos com juros pré-fixados e carência. Com a inflação, reajustava os preços de seus contratos e pagava suas dívidas com tranquilidade. A maior obra física do regime, a Hidrelétrica de Itaipu, foi feita pela companhia. Por determinação de Geisel, a Odebrecht comprou em 1978 a participação da Camargo Corrêa no Pólo Petroquímico da Bahia e se diversificou. Hoje, o grupo é o principal acionista da petroquímica Braskem, cujas ações subiram mais de 400% no ano passado.

O faturamento de US$ 14 milhões da Construtora em 1971 duplicou no ano seguinte, decuplicou em 1973 e alcançou o pico de US$ 902 milhões em 1982, quando tocava 853 obras no País. A partir de 1978, Emílio Odebrecht, filho do fundador, direcionou a empresa o exterior, usando o know-how desenvolvido no Brasil para vencer duras concorrências. No ano passado, a Odebrecht tocou 1.305 obras pelo mundo, tornando-se a 31a em faturamento fora de seu país de origem, com US$ 1,6 bilhão. A empresa que pegou o vendaval da ditadura aproveitou a brisa da democracia e tornar-se a maior multinacional brasileira.