03/09/2003 - 7:00
DINHEIRO ? O acidente recente em Alcântara reacendeu a
polêmica sobre a pesquisa espacial no Brasil. Por que um país
em desenvolvimento deve investir num programa tão caro e
tão arriscado?
HUGO PIVA ? Os programas aeroespaciais são cruciais para os países em desenvolvimento. Esse tipo de pesquisa é a forma mais adequada de se adquirir e dominar tecnologias avançadas. Essas tecnologias de ponta, por sua vez, são essenciais para que os produtos brasileiros tenham maior poder de competição no mercado internacional. Hoje, o grosso da nossa exportação não carrega muito valor agregado. E isso acontece porque nós não dominamos as tecnologias mais avançadas e somos, portanto, dependentes de terceiros, das grandes potências. Isso também explica por que a marca dos produtos Made in Brazil não traz a mesma percepção de qualidade dos produtos fabricados em outros países.
DINHEIRO ? O desastre não reduz a credibilidade do programa brasileiro?
PIVA ? Todo acidente reflete contra a credibilidade do programa. Mas nós não podemos ficar para trás e entregar os pontos só por causa de um acidente. Todos os países que avançaram na área espacial sofreram reveses. Na história dos Estados Unidos, foram vários desastres, inclusive um neste ano, com a nave espacial Columbia. Na década de 70, eles também tiveram inúmeros problemas, antes de conseguir colocar seus satélites em órbita. Na Rússia, na França, na Inglaterra, na China e na Índia aconteceu o mesmo. No nosso caso, ao contrário, o programa sempre foi extremamente seguro e os acidentes foram raríssimos. Na fase de desenvolvimento inicial, não houve nenhum acidente operacional.
DINHEIRO ? A que o sr. atribui o desastre de Alcântara?
PIVA ? À falta de recursos.
DINHEIRO ? Por que o sr. pensa assim?
PIVA ? A falta de dinheiro não permite que as equipes científicas e técnicas sejam repostas na velocidade adequada. E isso amplifica os riscos. Essas equipes foram sendo reduzidas desde o governo José Sarney e o programa espacial, além de receber verbas abaixo da necessidade, ficou sujeito a uma liberação irregular de recursos. Às vezes vinha o dinheiro; às vezes, não. Todas essas dificuldades provocaram um desmanche nos quadros. Quando a missão é a mesma, mas a equipe muda, a qualidade fica seriamente prejudicada.
DINHEIRO ? Houve erro humano?
PIVA ? Em todo acidente, se formos analisar nas minúcias, será possível encontrar um erro humano. Mas não é o caso de se discutir isso. Os técnicos eram bem treinados e muito capacitados. Porém, eram insuficientes em número. Conclusão: acabavam assumindo mais riscos do que seria necessário. Chegou-se a um ponto em que os riscos eram tantos que eles não tinham escolha. Continuavam envolvidos no programa espacial por puro heroísmo. Perdemos homens dedicados e competentes, muitos deles formados no meu tempo.
DINHEIRO ? Durante o regime militar, os repasses de recursos eram maiores. A pesquisa era tratada de forma estratégica?
PIVA ? Sem saudosismo, ali havia seriedade. O Brasil sabia que precisava dessa tecnologia e dava apoio a isso. Se não cuidarmos de tecnologias avançadas, nunca teremos independência. A soberania de uma nação é diretamente proporcional à quantidade de tecnologias de ponta que ela consegue dominar. Quem não tem tecnologia, tem que obedecer a quem tem.
DINHEIRO ? O Brasil nunca se envolveu em grandes conflitos. Não seria natural que gastos como do programa espacial diminuíssem com a redemocratização?
PIVA ? A democratização, é claro, foi benéfica para o País. É algo que não se pode nem discutir. Mas ela foi utilizada demagogicamente em alguns aspectos. Tentando-se buscar resultados imediatos, abandonaram programas de longo prazo, como as pesquisas aeroespacial e na área de telecomunicações. A própria Embraer sofreu muito e acabou recuperando-se depois. Hoje, é uma das maiores exportadoras do País, mas as bases desse sucesso foram plantadas lá atrás. Essa empresa quase foi perdida depois do regime militar. Alguns governos, que vieram depois dos militares, perderam a noção estratégica.
DINHEIRO ? Quais eram os orçamentos do programa espacial no regime militar?
PIVA ? É difícil precisar, porque as moedas mudaram muito. Mas, em termos reais, os gastos eram pelo menos três vezes maiores do que os atuais. Além disso, os repasses eram constantes. Não estavam sujeitos aos freqüentes contingenciamentos orçamentários. Era um dinheiro respeitado, que vinha certinho. A gente sabia quantos técnicos deveríamos contratar e tínhamos segurança de que, no ano seguinte, nada seria interrompido. Hoje, nós estamos gastando uns US$ 30 milhões por ano. Precisaríamos do triplo.
DINHEIRO ? Além do prejuízo material, como o sr. avalia a perda de quadros científicos?
PIVA ? Foi com aquela estabilidade orçamentária do passado que eu pude formar uma equipe, algo que leva de três a sete anos. Essas pessoas que se foram eram formadas nas melhores escolas: no ITA, na Politécnica e em outras universidades de ponta. Vão fazer uma falta tremenda. Mas não podemos retroceder. Devemos voltar a formar novas equipes imediatamente. A pesquisa espacial não pode parar.
DINHEIRO ? Como o sr. avalia a reação do governo brasileiro ao acidente?
PIVA ? Foi exemplar, porque o ministro José Viegas disse que o programa continuará tendo apoio e não será abandonado. Mas já há vozes dizendo que é preciso reexaminar as prioridades, e eu tenho um certo medo disso. Receio que olhem para as prioridades de curto prazo e se esqueçam das gerações futuras. Nossos netos precisam herdar um País sério e desenvolvido para que não sejamos subservientes aos interesses das grandes potências.
DINHEIRO ? A base de Alcântara é tida como uma das melhores do mundo. O sr. é favorável a um acordo com os Estados Unidos para que eles possam utilizar aquela plataforma?
PIVA ? A base é privilegiadíssima. Eu escolhi aquele lugar sobrevoando desde Fernando de Noronha até a fronteira com o Peru e a Colômbia. É um dos melhores sítios de lançamento do mundo. E esse ativo pode ser usado em nosso benefício. Podemos alugar a base, como os americanos querem, ou até mesmo fazer acordos maiores de cooperação. A Ucrânia tem essa intenção. Com essa cooperação internacional, que é benéfica, podemos encontrar recursos adicionais para retomar nosso programa. Mas os acordos não podem substituir nosso esforço de desenvolvimento próprio.
DINHEIRO ? Quais foram os grandes marcos do programa espacial brasileiro?
PIVA ? Lançamos vários foguetes, sem nenhum acidente, como os Sonda 1, 2, 3 e 4. Eram foguetes com cargas para fazer sondagem científica na estratosfera. Para o Brasil, foi um grande avanço tecnológico.
DINHEIRO ? De que forma a pesquisa espacial ou militar pode ter efeito positivo nas exportações de outros produtos civis?
PIVA ? As tecnologias que, na origem, são essencialmente militares têm também aplicações excelentes para o desenvolvimento de um país. As descobertas científicas logo se refletem nas indústrias e todo o nosso parque melhora de qualidade. Basta ver o que aconteceu na Califórnia, o Estado mais rico dos Estados Unidos. Antes de ser a região do Vale do Silício, a Califórnia é um dos principais pólos da pesquisa militar americana.
DINHEIRO ? Quais são os principais exemplos da transmissão das descobertas científicas militares a produtos do cotidiano?
PIVA ? A roupa que você usa nasceu no programa espacial dos Estados Unidos. Tecidos como o poliéster e o tergal foram desenvolvidos com a finalidade de não pegar fogo e eram usados pelos pilotos da Força Aérea Americana. Grande parte da tecnologia hoje usada nos aparelhos celulares foi também desenvolvida em bases militares. A comunicação sem fio era usada entre pilotos. E, depois, explodiu no mundo inteiro. Além disso, na medicina de precisão, grande parte dos avanços surgiu em pesquisas científicas militares.
DINHEIRO ? E no caso brasileiro?
PIVA ? Para lançar o primeiro foguete que nós usamos no nosso programa espacial tivemos de desenvolver uma máquina para fazer a extrusão de tubos de alumínio de grande precisão. Essa mesma máquina depois ajudou o Brasil a economizar milhões e milhões de dólares em equipamentos usados nos automóveis, e que antes eram importados. Depois houve muitas outras descobertas com aplicações na indústria química, de tintas, de plásticos e mesmo de aços especiais. O aço que faz esse foguete brasileiro é exportado até para os Estados Unidos. É um produto de altíssima resistência. No meu tempo, chegamos a desenvolver até válvulas de coração, com os materiais especiais que utilizávamos.
DINHEIRO ? Na corrida espacial, o Brasil está muito atrás de outros países em desenvolvimento?
PIVA ? Estamos ainda muito atrás da Rússia, da China e da Índia. Mas até há poucos anos, nosso programa era mais avançado do que o indiano. As pessoas vinham ao Brasil e ficavam espantadas ao ver como podíamos fazer muito com poucos recursos. Países como a Índia e a China gastam cerca de US$ 1 bilhão por ano. Mas já chegamos a ser os mais avançados do Terceiro Mundo, mesmo gastando relativamente pouco.
DINHEIRO ? O Brasil poderia, então, estar hoje vendendo tecnologia para os países em desenvolvimento?
PIVA ? Sem dúvida. E com essas tecnologias estaríamos também fortalecendo a imagem dos demais produtos brasileiros. Passaríamos a ser mais respeitados. Um país que faz satélites e lança foguetes teria mais condições de vender automóveis e outros produtos industriais com muito mais desenvoltura.
DINHEIRO ? O sr. defende o fortalecimento da indústria bélica nacional?
PIVA ? Claro, porque importar armamentos é um grande desperdício. Compra-se algo que não produz nada. Mas o desenvolvimento da tecnologia é altamente produtivo para o País.