04/08/2022 - 12:47
Há poucos dias fiquei espantado ao ouvir, na Rádio Cultura FM de São Paulo (sim, sou desses exemplares jurássicos que ainda escuta rádio enquanto dirige pelo trânsito caótico – ainda mais a Cultura, que só toca música clássica!) uma interpretação da Primeira Sinfonia de Beethoven tocada por uma orquestra que procurou reproduzir o andamento original da obra, tal como executado na época do compositor, em princípios do século XIX. Foi espantoso constatar que o ritmo definido pelo gênio alemão é consideravelmente mais lento do que aquele que estamos acostumados a encontrar nas interpretações da segunda metade do século passado para cá. Ao final, o musicólogo, apresentador do programa, comentava que este fenômeno de aceleração no universo da música erudita é algo “epidêmico” e que vem “contaminando” todos os regentes e intérpretes nos últimos tempos. Segundo ele, inclusive, tal processo corresponde a um notável aceleramento do ritmo cardíaco no ser humano nos últimos dois séculos.
+ Um convite à sábia ignorância
Não são poucos os historiadores que já apontaram como as mudanças nas dinâmicas produtivas e de estilo de vida acabam determinando transformações no âmbito físico e psicológico da humanidade. No caso específico dos dois últimos séculos, denominados “Tempos Modernos”, caracterizados pela industrialização e, mais recentemente, pelo imediatismo da digitalização, um dos efeitos mais marcantes, sem dúvida, é esse da aceleração exacerbada de tudo, desde a vida profissional até a nossa frequência cardíaca.
Se fizermos um certo esforço para parar e refletir – operação cada vez mais difícil, diga-se –, vamos constatar que estamos ridiculamente correndo de forma desembestada o tempo todo: no trabalho, em casa e até no lazer. Sim, não deixa de ser irônica a forma como mulheres e homens contemporâneos “descansam” hoje em dia: correndo! Não que eu não reconheça na corrida um recurso justificável para manter a forma, perder peso e viver com mais saúde. Porém, tomando como base minha experiência cotidiana de caminhadas matinais no Parque do Ibirapuera, sinto que talvez estejamos perdendo a justa medida.
Influenciado pelas leituras que fazia para escrever meu último livro, É Próprio do Humano (Record, 2022), em especial o capítulo “É próprio do humano saber contemplar”, passei a desacelerar para poder contemplar melhor o raro espetáculo das árvores, das plantas, dos pássaros e outras preciosidades da natureza que miraculosamente sobrevivem neste recanto abençoado da cidade. Foi então que me dei conta do quanto estava perdendo. Desacelerei e, com a diminuição do ritmo, me espantei não só comigo mesmo, ao me descobrir capaz de contemplar, como também com os outros, que passam por mim correndo, com os olhos perdidos em algum lugar que não na bela paisagem iluminada pela “aurora de róseos dedos”, ou presos ao relógio de pulso, ansiosos por controlar o tempo e checar a sua performance.
Estamos correndo, correndo cada vez mais, em todas as ocasiões. Isso, certamente, nos fará chegar mais cedo. Mas, cabe perguntar: onde? Sim, estamos correndo, acelerando, aperfeiçoando nossa performance, batendo novas metas e atingindo resultados mais ambiciosos. Contudo, qual é o prêmio? Talvez estejamos tão obcecados em ganhar que não conseguimos mais enxergar as perdas que essa ambição desmedida pelo ganho provoca.
Um dos filósofos mais lúcidos da contemporaneidade, o coreano que escreve em alemão Byung-Chul Han, cunhou uma imagem que, a meu ver, traduz brilhantemente os tempos que estamos vivendo: a sociedade do cansaço. Sim, o resultado de toda essa aceleração desenfreada que caracteriza nosso estilo de vida só pode redundar nisso: num cansaço crônico que compensa nossa euforia acelerada com uma depressão profunda e imobilizadora; ou, então, o que tem sido cada vez mais frequente, infelizmente, com a morte súbita, repentina. A morte por excesso de saúde, como pontua Han. Estamos desrespeitando o ritmo do humano, e seu resultado não só é desumanizador como patológico. A pressa é inimiga do humano, e não da perfeição.