Houve o 14 de julho de 1789. Houve o maio de 1968, quando os estudantes foram às ruas de Paris para dizer que era proibido proibir. E houve o 24 de maio de 1976 ? aí sim a Bastilha caiu. Em uma sala ao lado do bar do pátio, no Hotel Intercontinental, próximo da Place de La Concorde, nove especialistas em vinhos debruçavam-se diante de 20 garrafas. Eram dez tintos (Cabernet-Sauvignon) e dez brancos (Chardonnay).

Doze tinham sido trazidos da Califórnia, nos Estados Unidos. Oito tinham rótulo francês. O evento, idéia de um inglês dono de uma pequena loja nas redondezas e sua sócia, uma americana afeita a oferecer cursos para sommeliers, tinha um objetivo: confrontar safras do Novo e do Velho Mundo, numa degustação às cegas, sem que os jurados pudessem saber o que provavam. Deu-se a surpresa quando o veredicto foi anunciado: entre os brancos, venceu o Chateau Montelena, de 1973, do Vale do Napa, na Califórnia. Entre os tintos, o troféu coube ao Stag?s Leap Wine Cellars, da mesma região. O que era para ser apenas uma tarde interessante gerou espanto: pela primeira vez na história vinhos americanos tinham derrotado os gauleses na terra do inimigo. ?Os 9 jurados, todos especialistas e renomados, ficaram confusos quando os garçons começaram a servir os brancos?, disse a DINHEIRO o jornalista americano George M. Taber. ?Não conseguiam perceber as diferenças entre os californianos e os franceses?. O intervalo antes da segunda rodada, a dos tintos, regado a água Vittel, virou um rebuliço atípico. ?Ao final daquela tarde vi grandes nomes da gastronomia francesa atônitos, perdidos?, lembra Taber.

Ele era o único jornalista presente na sala. Aquela aventura transformada em revolução é relatada no livro O Julgamento de Paris, de autoria do próprio Taber, lançado no Brasil pela Editora Campus/ElSevier. É uma magnífica reportagem. De uma história quase banal na primavera parisiense, construiu-se uma virada espetacular no universo dos vinhos. Taber era correspondente da revista Time. A reportagem saiu em uma página, discreta. ?Não imaginei, de modo algum, que aquele relato fosse tão importante?, diz. ?Não era, claro, como a travessia do Atlântico por Charles Lindbergh. Não passava de uma reportagem agradável, e nada mais que isso?. O tempo tratou de jogar fermento na notícia. Havia, naturalmente, a metáfora da América invadindo a Gália. O The New York Times foi atrás da reportagem, outros jornais seguiram a mesma trilha e em poucos meses explodiu o fenômeno econômico. Para alimentar o mito, chegou-se a dizer que na sala havia bandeiras dos dois países. ?Mentira?, crava Taber.

De lá para cá, o vinho também globalizou-se. Os produtores do Novo Mundo elevaram sua participação nas exportações mundiais de 3,8% em 1990 para 21% em 2003. O porcentual da França nas vendas ao exterior caiu de 51.9% para 38%, no mesmo período. A prova de Paris derrubou dois mitos. Mostrou que há ótimas safras em lugares muito distantes do mítico terroir francês. Mostrou também que os vinicultores não precisam ter longa tradição transmitida de geração a geração para produzir grandes vinhos. Por isso aqueles duas garrafas da Califórnia viraram troféu, a ponto de terem sido expostas em exposição no Museu da História Americana do renomado Instituto Smithsonian. ?Contam um pedaço da economia de nosso tempo?, diz Taber, a testemunha daquele evento de trinta anos atrás.

O RESULTADO FINAL
A avaliação dos nove jurados franceses em maio de 1976

TINTOS

1. Stag?s Leap Wine Cellars, 1973 (EUA)

127,5 Pontos

2. Château Mouton-Rothschild, 1970 (França)

126

3. Château Haut-Brion, 1970 (França)

125,5

4. Château Montrose, 1970 (França)

122

5. Ridge Monte Bello, 1971 (EUA)

103,5

6. Château Léoville-Les-Cases, 1971 (França)

97

7. Mayacamas, 1971 (EUA)

89,5

8. Clos Du Val, 1972 (EUA)

87,5

9. Heitz Martha?s Vineyard, 1970 (EUA)

84,5

10. Freemark Abbey, 1969 (EUA)

78

 
BRANCOS

1.Chateau-Montelena, 1973 (EUA)

132 Pontos

2.Mersault-Charmes, 1973 (França)

126,5

3.Chalone Vineyard, 1974 (EUA)

121

4.Spring Mountain, 1973 (EUA)

104

5.Beaune Clos des Mouches, 1973 (França)

101

6.Freemark Abbey, 1972 (EUA)

100

7.Bâtard Montrachet, 1973 (França)

94

8.Puligny-Montrachet, 1972 (França)

89

9.Veedercrest, 1972 (EUA)

88

10.David Bruce, 1973 (EUA)

42